O espaço público é uma realidade de contornos fluidos, que medeia as relações entre a sociedade, onde novos interesses estão sempre em formação, e as instituições públicas existentes. Esta articulação ou interação entre uma realidade formada, e que traz consigo uma dimensão de inércia própria, e uma realidade em formação, que, por seu turno, traz consigo uma dimensão dinâmica de mudança, é a realidade própria do espaço público no contexto das democracias pluralistas. Em menos palavras, pode dizer-se que cumpre ao espaço público realizar nestas democracias a intermediação entre sociedade e Estado.
Há um outro uso, comum e perfeitamente legítimo, da expressão “espaço público” que diz respeito ao espaço físico (mas hoje também virtual) que é realmente acessível a toda a população da comunidade. Neste uso da expressão “espaço público” estamos a falar, desde logo, e paradigmaticamente, da rua, mas também dos jardins, das bibliotecas, dos edifícios públicos, das universidades e das escolhas públicas, dos hospitais, etc. De certa maneira também do espaço virtual. De facto, nos dias que correm a rua é menos a rua do que a rede social.
Estes dois usos da expressão “espaço público” estão hoje bastante desligados entre si e de acordo com alguns autores está em causa religá-los. Tenho em mente uma intervenção já com algum tempo de Boaventura de Sousa Santos, a propósito de actos de alguma desordem pública no rescaldo de uma manifestação diante da Assembleia da República, ocorrida em novembro de 2012. De acordo com Boaventura, esses distúrbios “(…) demonstram que, quando as instituições se fecham, a rua é o único lugar onde os cidadãos europeus manifestam o seu divórcio em relação aos partidos políticos e aos governos.”
Por outras palavras, a falência de uma opinião pública faz recuar ou remontar o espaço público à sua origem: a rua. Mas por que razão a rua? Por que razão entendê-la como origem? Por duas razões pelo menos:
1. Porque a rua é espaço não apenas de acesso universal, aberto a todos, mas acumula com esta universalidade a mais conseguida igualdade. A rua não é absolutamente igualitária, mas é, talvez junto com a praia, o espaço público que melhor conserva uma posição igualitária entre todos os que o frequentam. O mesmo não sucede num hospital, onde uns estão doentes e outros tratam, e onde os primeiros podem estar doentes em graus e maneiras muito diversos. O mesmo não sucede numa escola ou numa universidade, onde ganham importância e valor próprio as diferenciações de mérito. Com a rua, na rua, nada disso é esperado a não ser de maneiras secundárias. Há montras com preços obscenamente contrastantes, há esplanadas e restaurantes inacessíveis às bolsas da esmagadora maioria, há salas de espectáculos extremamente elitizadas. Ainda assim, a rua que permite o acesso a todos estes espaços permanece de todos e a todos acessível.
2. Porque a rua a todos acessível e igualitária é ela mesma acesso a todas as formas de espaço privado e público é também o lugar por excelência da verificação da desigualdade e da igualdade. É, por isso, o local simbolicamente mais adequado para se fazer o contrato social e se inaugurar o político.
A resiliência da rua é, aliás, apontada por Boaventura de Sousa Santos ao afirmar que “a rua é o único espaço público que não está colonizado pelo capital financeiro”.
A famosa frase de Marcelo Caetano – “para o poder não cair na rua” – aquando da sua rendição a Spínola resume o embate entre o poder da rua, de destruição de uma ordem construída, regresso à origem constituinte, fundacional, e essa precisa ordem constituída que resiste à sua desordem – o poder solidamente construído.
A rua não pode, contudo, contentar-se com a posição de lugar de protesto, resistência, até mesmo dissolução. As nossas ruas precisam de tornar a ser lugares de reencontro igualitário entre anónimos – na rua reencontramos nos outros os nossos motivos, as nossas esperanças e os nossos objetivos. Trata-se de voltar à rua para restaurar o convívio nascente que faz uma comunidade viva.
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