[Chegou-nos às mãos outra interessante contribuição para revigorar ideias]
Empolgada pelo mediatismo sufocante, ou inconsciente declaração colectiva de interesses, parece que a “corrupção” reconfirmou oficialmente em 2014 o seu lugar de destaque na dialéctica popular. Pela sua natureza estrutural, a corrupção não poderia ser nunca um fenómeno surpreendente, e há muito que nos habituámos a viver com ele.
Na linguagem corrente, habituámo-nos igualmente a ouvir a palavra corrupção associada ao sistema político. Corrupção dos políticos, das instituições, do próprio regime. Quase sempre na terceira pessoa do plural. Um português comum tem uma cota mensal de vezes para apontar o dedo à política, e queixar-se dela, ou “deles”, não vá passar por colaboracionista. Não critico a postura. Têm razão.
Ainda há umas semanas, fomos brindados com o célebre e surpreendente rasgo de sinceridade, estilo «um político confessa-se» de Carlos Abreu Amorim, anunciando que “já não é mais liberal”. Dizia o honesto deputado que, por coordenar o grupo do PDS no inquérito ao BES, percebeu que “a lógica do liberalismo económico tem uma contradição insanável com a natureza humana”. A “vida toda a ler Hayek, Friedman, a escola de Chicago” para, em poucas semanas, tudo ir por água abaixo. Ipsis verbis. A certo momento da entrevista, Abreu Amorim confessa até estar comovido. Percebe ele e percebemos todos porquê. Abreu Amorim não podia encaixar mais no rótulo de político corrompido.
Porventura também comovidos com tanta transparência, os jornalistas deixaram escapar as perguntas que se impunham. Considerando a sua anterior apologia teórica do liberalismo económico, como explica o deputado a sua filiação num partido supostamente social-democrata? Quantas vezes reprimiu o seu ímpeto liberal quando tinha de votar legislação de pendor social-democrata? Ou quantas vezes renegou os estatutos do partido pelo qual foi eleito quando votou as políticas que hoje considera erradas? E sobretudo, com tanta incongruência, como vai continuar sentado na mesma bancada de sempre, com as mesmas pessoas de sempre, votando da mesma forma de sempre?
A partir daqui só se pode imaginar, mas arrisco dizer que os Abreus Amorins são hoje, no PSD ou em qualquer outro sítio, tão liberais quanto nacionalistas seriam na União Nacional. “Eles” são tão liberais hoje como comunistas seriam na União Soviética, como democratas se transformaram após a queda do muro e como ainda comunistas novamente seriam, se outra revolução voltasse a acontecer.
As pessoas têm razão quando dizem que a corrupção mina implacavelmente o regime, mas fá-lo sobretudo por dentro. Falta explicar-lhes que a corrupção intelectual e ideológica faz mais estragos que alguns ou mesmo muitos milhões. E falta ainda fazer-lhes entender que estão tão ou mais expostas ao seguidismo dogmático e acrítico que os próprios políticos.
Por David Morais