Há muitas coisas que, enquanto cidadão Europeu, me têm perturbado ao longo dos últimos anos. A lista é longa. Começa com a inversão do propósito do projecto Europeu. (Antes, um projecto de cooperação, de desenvolvimento, de alargamento dos direitos, de paz consertada. Hoje, um projecto de hierarquização de nações, de retrocesso social, de compressão e aniquilação de direitos, e de uma espécie de Guerra Fria intraeuropeia.) Continua com a falta de eficácia e solidariedade no combate às dívidas soberanas. Com a falta de fraternidade, como muito bem dizia o Jorge Pinto aqui há dias, entre Estados-membros. Com a falta de visão, a longo prazo, do que deve ser a Europa. Podia falar de tudo isto.
Mas não. Há um outro assunto que me tem vindo a perturbar ainda mais. Um assunto que, talvez por não ser tão evidente, se esconde na espuma dos dias. Se esconde por detrás de uma naturalização que diariamente lhe temos feito. Refiro-me à questão da racionalidade. E a minha constatação é a seguinte: hoje, uma coisa que não tem racionalidade económica passa a ser automaticamente irracional e, como tal, não deve ser sequer democraticamente sufragada. Ou seja, uma coisa que de um ponto de vista econométrico se apresenta como ilógica torna-se logo, por si só, irracional e, portanto, não pode ir a votos. É o expoente máximo da tecnocracia. O sonho daqueles que consideram que a política deve assentar única e exclusivamente em technicalities financeiras.
Há exemplos gritantes a este respeito. Posso dar dois. O primeiro é o caso Grego. Em Dezembro, a Grécia convoca eleições antecipadas e, desde logo, se percebe que há um “risco” grande de o Syriza ganhar. Como o Syriza defende uma reestruturação dívida e/ou uma eventual saída do Euro (agora mais moderadamente, mas chegou a colocar isso em cima da mesa) – e isso poderia lançar milhares no desemprego, iria trazer uma inflação galopante, uma desvalorização brutal da moeda, etc. – o FMI desde logo corta o financiamento ao país até ver “esclarecida” a sua posição oficial. Ou seja, como não tem lógica que os Gregos queiram viver pior, o melhor seria que nem houvesse eleições. “Mas que coisa é essa agora de o povo grego querer um partido assim no Poder?” – ecoa nos corredores da Comissão Europeia. Dá-me vontade de perguntar: mas e se os Gregos quiserem viver pior? Por outras palavras, se quiserem viver pior economicamente, mas com uma redobrada dignidade, liberdade e independência? Eu sou da opinião que uma saída do Euro pode ter consequências dramáticas, mas que temos nós com isso? Os Gregos já não podem decidir por si, sem isso acarretar sanções, reprimendas, ameaças e cortes de financiamento?
Um segundo exemplo é o discurso de Cavaco Silva no virar do ano. Cavaco, no seu tom e estilo, veio a terreiro defender que os partidos se deviam entender antes das eleições de 2015. Que isso era crucial para o bom funcionamento do país. Para o bom funcionamento da economia. Entenda-se, aqui, que os partidos de Cavaco são PS e PSD – com a bengala CDS. Uma vez mais, o que se está aqui a ensaiar é um esvaziamento do sufrágio democrático. Como quem diz “vamos lá combinar tudo antes das eleições que é para não termos nenhuma surpresa e minimizarmos a importância disto o melhor que podemos”. Cavaco, enquanto Presidente, e sem sequer se aperceber, faz algo gravíssimo: esvazia as eleições. Uma outra vez, o melhor era nem as haver. O desejo de Cavaco era o de que as eleições, concebidas em democracia como um momento de renovação e de reflexão, passassem a ser uma mera technicality de concertação. Arrisco-me mesmo a dizer que o ideal seria ficarmos aqui durante 20 ou 30 anos sem eleições – ou com eleições cujos resultados fossem previamente combinados – até resolvermos os problemas do país. Caso contrário, ainda há um resultado inesperado, e os mercados agitam-se, e estamos tramados.
Eu digo antes: eles que se agitem.
É interessante cruzar este pensamento com a demora de tantos anos até que o BCE decidisse finalmente começar a comprar dívida dos estados, um mínimo do que a UE devia fazer numa situação de crise deste tipo. Mais do que um expoente máximo de tecnocracia, a UE sofre de uma propositada e falsa unidade ideológica, uma “TINA”, que é imposta por quem tem esse poder e aceite e obedecida por todos os agentes da UE. Demora meia década a perceber-se algo que já era defendido desde o princípio, de forma que nem vamos conseguir chegar a outras medidas que seriam importantes para combater a crise (estímulo, estímulo!). Mas a referência à Grécia é também importante à luz do que se passou hoje, por dois motivos. Primeiro, por terem incluído a Grécia dos maus alunos nesta compra de dívida (o “risco moral” parece esfumar-se perante o risco de colapso da economia da UE que arrastaria os países ricos). Segundo, por ver Mario Draghi rapidamente explicar, em resposta a um jornalista, que “full risk sharing” está fora de questão. Pois é, afinal ainda anda aí o “risco moral”, os “culpados” – pobres – vs. os “ajuizados” – ricos.
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