Invocação aos manifestantes do 15 de Março.

Dia 15 de Março deste ano algumas milhares de pessoas saíram às ruas no Brasil pedindo o impeachment de Dilma Roussef – a presidente que há apenas três meses assumiu o governo e que nesta legislatura não apresenta motivos legais e políticos que justifique tal atitude por parte dos seus concidadãos e concidadãs. Este dia é importante porque marca a falta de bom senso de parte da sociedade civil brasileira, a incapacidade em ver o que é verdadeiramente importante  e nada mais representa do que a sua ignorante intolerância. Vejamos, todos os dias temos relatos sobre homossexuais que são assassinados em praça pública, até um rapaz de 14 anos foi espancado na escola que estudava e morreu no hospital simplesmente por ser filho de um casal de homossexuais. Um jovem foi esfaqueado pelo seu próprio vizinho por ser também homossexual e não poderei jamais listar as centenas de casos semelhantes e inacreditavelmente difíceis de narrar por sua crueldade e frieza. E aqui invoco as milhares de pessoas que saíram nas ruas no dia 15 de Março para se erguerem. É aqui que eu quero ouvir as suas vozes indo contra a essa realidade que muito infelizmente faz parte do quotidiano brasileiro.

A violência doméstica e o crime contra as mulheres têm aumentado consecutivamente. A cada 100 mil mulheres 4,4% são assassinadas. O Brasil se encontra em 7º lugar no ranking de países que cometem crimes contra as mulheres, sendo que não podemos nos esquecer da violência sexual, onde os culpados não são punidos, mesmo quando confessam a sua violação em cadeia nacional como foi o caso de Alexandre Frota. E é aqui que invoco as milhares de pessoas do dia 15 de Março de 2015. É aqui que quero ver o seus braços estendidos gritando “basta!”. É aqui que quero ver as bandeiras do Brasil colorindo as janelas e ouvir o barulho das panelas nas sacadas das casas do povo brasileiro.

A participação do feminino na política pode ter vindo a aumentar, mas é ainda é insuficiente, reduzida a um número no mínimo ridículo. Em 2014, de quase 25 mil candidatos, 7.407 eram mulheres. De 513 deputados na Câmara dos Deputados Federal, apenas 51 são mulheres. Não existe um partido político no Brasil que tenha uma mulher como presidente, e embora o cargo máximo do governo brasileiro esteja com uma mulher e que isto, num país machista como o Brasil, tenha contribuído para a valorização da mulher em altos cargos, o olhar sobre a mulher brasileira ainda se incide numa visão patriarcal, misógina, sexista e sexualizada.  E aqui pergunto onde estão as mulheres do dia 15 de Março? Se querem mudar o Brasil façam muito mais do que desfilar com a bandeira pintada nos seios como se isso representasse a sua pátria amada. É aqui que quero vê-las: debatendo ideias num universo político dominado por homens, erguendo as suas vozes com propostas concretas para um Brasil melhor, mostrando que as mulheres brasileiras precisam e devem ser respeitadas e valorizadas, e não reduzidas à submissão de um universo machista e castrador.

O Brasil é um estado laico, porém é comum encontrar crucifixos nas instalações das instituições do governo. Também é de praxe os evangélicos misturarem religião com política e quererem impor os seus valores na elaboração dos projetos de leis e o controle sobre as agendas do parlamento. A “cura gay” é um exemplo clássico desse comportamento evangélico arrogante. Como se isso não bastasse, o deputado evangélico Cabo Daciolo, em Março deste ano afirmou que iria apresentar uma proposta de emenda à Constituição alterando o texto “todo o poder emana do povo” para “todo poder emana de Deus”. Embora o seu partido PSOL-RJ tenha se retratado pelo deputado e feito cair a proposta de emenda, é inadmissível para qualquer brasileiro aceitar que tal absurdo tenha sido sequer pensado por um representante popular. E aqui pergunto onde estão os milhares de manifestantes que estavam dispostos a defender o seu país? Venham aqui defender primeiro, a qualidade do trabalho dos deputados que elegem e depois a constituição brasileira, documento máximo de qualquer manifestante porque representa e protege ninguém menos do que essa entidade coletiva denominada povo da qual fazemos todos parte.

A democracia foi feita e aqui invoco a todos os milhares de manifestantes que saíram às ruas para pedir o impeachment da mulher que foi torturada na ditadura e que conhece muito bem a intervenção militar – que muitos dentre os que estiveram nas manifestações pediram que regressasse ao Brasil –  invoco-os para que indaguem sobre como estava o Brasil há anos atrás com um governo de direita. Invoco-os para saírem às ruas contra a intolerância que massacra o dia-a-dia brasileiro, que exijam um trabalho sério na Câmara dos Deputados Federal, no Senado, no Congresso Nacional. Invoco para começarem a mudar o Brasil começando por si próprios, aceitando as diferenças do vizinho do lado, permeando a liberdade de pensamento e liberdades individuais. Mas acima de tudo, por agora, invoco que estudem história para saberem o que significa viver em ditadura para que não saiam dizendo disparates como pedir uma intervenção militar e muito menos aplaudir pessoas como Carlos Alberto Augusto, ex-agente do Dops, que em 1973 assassinou militantes durante a ditadura, participou presencialmente de sessões de tortura e hoje afirma que se ainda não metralhou comunistas foi porque não teve a oportunidade. Foi este tipo de discurso que as pessoas que saíram às ruas no dia 15 de Março vergonhosamente aplaudiram ao mesmo tempo que rezavam o “Pai Nosso”. Invoco para que discutam a reforma política que passa por uma visão progressista das instituições e dos atores políticos do estado laico brasileiro. A reforma política merece ser discutida e oxalá implementada, pois o Brasil precisa sim de uma reforma que reestruture os vários organismos políticos no seio do país. E aqui invoco os milhares de manifestantes não somente para discutir a reforma política, mas para entenderem um pouco sobre política, pois a regra básica sobre o impeachment é: se o mandato de um presidente é cassado no Brasil, quem assume é o vice-presidente, ou seja, se a manifestação do dia 15 de março pudesse influenciar, primeiro dois terços dos 513 deputados federais (que precisariam de denúncias concretas) e o processo subisse para o Senado proceder ao julgamento, quem iria assumir a presidência da República Federativa do Brasil seria o número dois de Dilma – o vice-presidente Michel Temer, portanto o PT continuaria no poder até o final do mandato. A democracia foi feita numa eleição histórica no Brasil com a vitória de Dilma, aceitem esse fato e boa sorte para as próximas eleições, pois por agora, preocupem-se antes com a construção da sociedade brasileira, é aqui que mora o futuro.

Os brasileiros gritaram que eram Charlie Hebdo em decorrência ao atendo do Estado Islâmico na França – um país centenas léguas de distância do Brasil – mais do que saírem às ruas pedindo um impeachment  por ego democrático ferido, deveriam ter saído gritando “eu sou Peterson Ricardo de Oliveira”, o rapaz de 14 anos espancado por ser filho de casais homossexuais que descrevo no início deste texto. E como ele tantos e tantas outras vítimas da intolerância e machismo que afeta a sociedade brasileira. Isto sim teria sido útil e importante para o Brasil, o resto é carnaval de mau gosto.

Texto de: Geizy Fernandes

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One thought on “Invocação aos manifestantes do 15 de Março.

  1. Acreditar que todos que saíram à rua queriam retirar Dilma do poder é redutor e branqueia a corrupção galopante que assola o Brasil. Se há quem irracionalmente clame pela ditadura militar (na maioria das vezes sem a ter vivido), também há quem apenas manifeste sua vontade de viver num país melhor. A própria oposição foi esclarecedora ao diferenciar o protesto da tentativa de deposição da presidente. Lá por sermos de esquerda, não podemos achar que todos os governos de esquerda são impolutos e estão isentos de crítica. Aliás, as práticas recentes do governo brasileiro de esquerdistas têm muito pouco. Os cortes nas áreas sociais sucedem-se. Qual a diferença de lutar contra isso em Portugal ou no Brasil? E misturar todas as misérias sociais das quais o país padece – verdadeiras – com o protesto, para descredibilizar a iniciativa, é falacioso. Devemos lutar contra todas essas coisas, o que não invalida que protestemos sob outras bandeiras.

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