A segunda guerra mundial foi um dos períodos mais negros da humanidade. De 1939 a 1945 cometeram-se crimes até então impensáveis e que continuamos a ter dificuldade em entender. O cerco a Leninegrado foi, certamente, um dos capítulos mais sombrios desse período de trevas. Entre 8 de setembro de 1941 e 27 de janeiro de 1944 – oitocentos e setenta e dois dias – a cidade esteve sitiada por tropas nazis, tendo resultado na morte de mais de um milhão de habitantes da cidade. O objectivo das tropas atacantes não era a simples capitulação, mas sim a aniquilação total da cidade e dos seus habitantes. Através da sua sétima sinfonia – “Leninegrado” –, estreada em Moscovo há exactamente 73 anos, Dimitri Shostakovich, um dos melhores compositores russos de sempre, consegue transpor para música a dor e sofrimento que os seus concidadãos e ele próprio sentiram durante o cerco.
Shostakovich foi, sobretudo, um compositor pela liberdade. Durante os anos trinta teve vários problemas com o regime de Estaline e viu vários amigos próximos ser enviados para os gulag. Natural da então Leninegrado, decidiu não fugir da cidade quando as tropas nazis se aproximavam e, tendo sido impedido de lutar na primeira linha, tornou-se bombeiro, dando inspiração à revista Time para uma das suas capas. Leninegrado é uma sinfonia longa, asfixiante. Durante os largos minutos de quase silêncio, percebe-se o desespero, o medo, a aproximação de um fim absoluto. Conta-se que nos primeiros ensaios, os músicos que tinham resistido vivos ao cerco desmaiavam, tanta era a fome que sentiam. Não desistiram. Ensaiar a sétima sinfonia tornou-se um acto de resistência activa. Podiam estar cercados, mas não capitulariam. Tocar tornou-se numa escapatória, num exercício diário que lhes provava que continuavam a estar vivos e a ser vivos, independentemente do que se passava fora da sala de ensaios.
Leninegrado foi também um prenúncio do que aconteceria alguns anos depois. O som e a cadência vão aumentando, lentamente. Os primeiros sinais de esperança, as primeiras vitórias, o crer e o querer que a cada nota vão aumentando, mais som, mais cadência, a certeza que resistir é vencer. Conseguiram. A 9 de Agosto de 1942, no dia em que Hitler havia apontado como o dia da capitulação e queda de Leninegrado, os músicos da cidade sitiada tocaram, como mais ninguém poderia tocar, aquela sinfonia que retratava cada um deles. Os sons atravessaram as linhas inimigas, mostrando que, independentemente do que viesse a acontecer, estariam prontos a resistir e a continuar a lutar pela liberdade.
Perseguido constantemente pelo seu amor à liberdade, Dimitri Shostakovich foi um personagem extraordinário. Obrigado a desculpar-se publicamente pelos seus “desvios” ao ideal comunista, não desistiu nunca de lutar por aquilo em que acreditava e de transpor para as suas composições a sua visão do mundo. A sua sétima sinfonia deve servir de exemplo para todos os que acreditam que a liberdade é o valor máximo a ser preservado e que resistir é, efectivamente, vencer.