“Depois de tudo, o trabalho é o melhor meio de escamotearmos a vida.”
Gustave Flaubert
A legislação laboral tem como funções principais a definição das regras do jogo e o equilíbrio de forças entre as partes na relação de trabalho.
Nos últimos anos, o Código do Ttrabalho perdeu, em grande medida, esta segunda dimensão, fazendo surgir, no quotidiano laboral, a extrapolação da subordinação jurídica característica do trabalho.
Quantas pessoas, neste nosso país ouvem diariamente expressões como:
“Tens muita sorte que te dê trabalho”
“Se não queres, há muito quem queira”
“Ou aceitas ou vais para a rua”
“Não te contratei para pensar, ou para achar, aqui quem manda sou eu.”
Estas frases, como muitas outras, são características de um moderno “quase feudalismo”, em que o empregador, pelo desequilíbrio de forças, sente que o trabalhador é alguém que serve exclusivamente o propósito de trabalhar a sua propriedade, a troco de um pequeno quinhão.
Atenção, não me insurjo contra as empresas e contra os empresários. Apenas pretendo demonstrar que uma relação de trabalho é algo que ultrapassa a figura do empregador (e do seu ego) e que o trabalhador deve ser respeitado e dignificado, independentemente do cenário económico que se verifique no país, ou nas empresas.
Deste esforço, não pode, no entanto, resultar o desequilíbrio de forças para o lado do trabalhador, sob pena de também dessa forma se penalizar o mercado das empresas e, consequentemente, por exigir demais, não se conseguir o básico: mais e melhor emprego.
Porque trabalhar é dizer que sim ao que tem de ser feito e obedecer ao que tem de ser obedecido, mas também é dizer que não às imposições abusivas, aos despedimentos sem regras, à ilegalidade assumida, enfim, a uma infinidade de realidades que caracterizam o universo laboral português da actualidade.
Como fazê-lo? Como dar a volta às regras do jogo para que o trabalhador possa dizer que não à exploração e possa caminhar no sentido do cumprimento pleno dos preceitos constitucionais?
Ora bem, é minha convicção que a actuação do Estado, como legislador e regulador, deverá passar por medidas de dupla incidência. Por um lado, é imperativo fiscalizar as práticas laborais, não permitindo que a inércia, ou a incapacidade inspectivas permitam a banalização das más práticas. Por outro lado, é preciso desenvolver um quadro juslaboral irrepreensível, que não seja pródigo em conceitos indeterminados e em janelas de oportunidade para a sobreposição dos interesses financeiros sobre os laborais.
Quanto ao primeiro ponto, mais dispendioso, o poder político terá que garantir o cumprimento da Lei. A inexistência de meios de fiscalização e de reposição da legalidade não pode servir de pressuposto para o incumprimento das condições de trabalho. A imensidão de factores que limitam o normal funcionamento do mercado laboral não permite a quem governa que se dê ao luxo de tapar os olhos. No actual cenário, passividade será sempre um sinal de cooperação.
Quanto ao segundo aspecto, para regular o mercado do trabalho é preciso um esforço público para destruir a imagem fabricada nos últimos anos, de que a resolução dos problemas financeiros das empresas passa pelo retrocesso das condições de trabalho e, mormente, das suas componentes remuneratórias. É preciso legislar melhor, no sentido da compreensão daquilo que deve ser a legislação laboral, nos termos acima apresentados.
Não basta demonstrar que o trabalhador é parte integrante do processo económico da empresa e que deteriorar as suas condições é condicionar todo o funcionamento da estrutura. É fundamental permitir que os cidadãos construam a vida em torno do seu emprego, com estabilidade, justiça, segurança e dignidade.