Em 22 de abril do ano 2000, foi deferido na cidade de Porto Seguro o Tratado de Amizade, Cooperação e Consulta entre a República Portuguesa e República Federativa do Brasil, sendo aprovado pela Resolução da Assembleia da República nº 83/2000. Este tratado, diplomaticamente foi concebido para demonstrar um apreço singular entre as duas nações irmãs. Contudo, existe uma determinação que automaticamente as separa: o direito dos cidadãos de ambas as nacionalidades exercerem o seu direito democrático e político em seus países de origem.
O ponto 2 do Título II do presente tratado refere-se ao estatuto de igualdade entre portugueses e brasileiros que se divide em duas instâncias: a primeira Estatuto de Igualdade de Direitos e Deveres, que confere a quem o requere os mesmos direitos e deveres dos cidadãos nacionais e o Estatuto de Igualdade de Direitos e Deveres e Direitos Políticos, que aborda os aspetos do anterior, com o acréscimo do requerente poder exercer os mesmos direitos políticos dos nacionais, o que inclui poderem eleger e serem eleitos nas eleições do país em que residem, com exceção às eleições presidenciais e outros cargos de presidência, como por exemplo, presidente do Tribunal Constitucional. E é aqui que encontramos uma lacuna que inibe o uso da democracia de fato que, neste caso, vem carregada de perda de direitos.
O nº 3 do artigo 17º do Título II refere: “O gozo de direitos políticos no Estado de residência importa na suspensão do exercício dos mesmos direitos no Estado da nacionalidade.” No Brasil, a participação nas eleições é obrigatória – o que traduz numa maior participação, é verdade, porém não necessariamente com consciência política e cívica por parte dos eleitores. Essa obrigatoriedade envolve uma esfera sistémica que permanece em constante atualização com a Justiça Eleitoral brasileira, o que por motivos legais, obriga os brasileiros a estarem em consonância com a mesma para a obtenção de documentos nacionais, participações em concursos públicos e outras situações. E isto justifica o não sucesso deste tópico do Tratado de Porto Seguro, pois ao suspender os direitos políticos dos brasileiros e portugueses que o requerem, suspendem inclusive o seu vínculo institucional com o estado nação. Existem casos práticos e não raros de pessoas que residem em Portugal, requereram os seus direitos políticos neste país e estão no limbo entre os dois países na medida que não têm a nacionalidade portuguesa e não podem requerer o passaporte europeu, como também não podem renovar o passaporte brasileiro porque os seus direitos políticos estão suspensos no Brasil. Ou mesmo casos de brasileiros que gostariam de se candidatar em concursos públicos e que não o podem fazer porque necessitam estar de acordo com a Justiça Eleitoral brasileira e com a suspensão dos direitos políticos não podem se candidatar, como é o caso de concursos para o Consulado do Brasil e Embaixada do Brasil que exigem um comprovativo de quitação das obrigações eleitorais. Esses são dois exemplos recorrentes que abandonam o ideal com que o Tratado de Porto Seguro foi construído e injustamente colocam os cidadãos numa posição de escolha ingrata por terem que optar entre poderem participar da vida política e democrática do país que residem ou perderem os seus direitos no seu país de origem, o que se traduz em dificuldades como as citadas acima.
Não obstante a isso, entendemos hoje, dezasseis anos após o Tratado de Amizade ter sido assinado, que a democracia está indo de encontro a uma escala mais alargada do que as fronteiras do estado nação. Embora as leis sejam nacionais e regionais, observando o projeto europeu, os cidadãos de todo o mundo criaram, através da tecnologia, maneiras de se conectarem entre si e poderem se dar o direito de escolha do mundo que querem co-existir. Podemos ver esses acontecimentos em petições, em plataformas de crowdfunding, em cartas, através de emails, para os líderes mundiais sobre uma determinada situação, principalmente naquelas que incluem os direitos humanos. Essas iniciativas fazem parte uma democracia global que não inibe a democracia de um país, mas que têm um poder de influência a nível político em todos os cidadãos do mundo. Portanto, o Tratado de Amizade, concebido no ano 2000, requer atualmente uma revisão textual, cívica e política que vá de encontro às reais necessidades dos brasileiros e portugueses que residem nos dois países. Do contrário, o ponto 2 do Título II referente aos direitos de igualdade, fracassará, pois ficará muito aquém do que poderia ser se as barreiras de suspensão dos direitos políticos de ambos os cidadãos nacionais fosse ela mesma suspensa no tratado, pois em Portugal apenas uma parcela pequena de brasileiros requerem ao estatuto com direitos políticos exatamente porque os mesmos serão suspensos no Brasil. Com a facilidade de informação e de trânsito a nível mundial, não faz sentido que a democracia seja limitada às fronteiras, neste caso concreto, dos dois países. Nem muito menos faz sentido a crueldade de colocar os cidadãos numa posição de escolha em que eles perderão os direitos adquiridos no país em que nasceram por quererem contribuir com a democracia do país em que escolheram para viver. Ainda mais sendo que todos nós somos moradores de uma era que está em constante mutação, sem grandes possibilidades laborais, de uma construção de carreira sólida que nos faça permanecer até ao túmulo num mesmo país. Basta para isso observar os núcleos migratórios dos últimos anos na União Europeia e nos países do Mercosul.
Portanto, apesar do Tratado de Amizade, Cooperação e Consulta entre a República Portuguesa e República Federativa do Brasil, ser uma construção e uma iniciativa diplomática de grande valor, atenta também contra a participação política, cívica e democrática nos dois países porque retira direitos adquiridos de seus cidadãos e por isso o ponto 2 do Título II do Tratado se torna um mero adereço do que poderia ser. Sendo extinta essa limitação de suspensão de direitos, que se transforma na prática em uma perda de direitos, poderia ser um potente impulsionador de um sistema democrático inédito na contemporaneidade e digno da cidadania no século XXI.
Texto de Geizy Fernandes