O RBI como projecto alter-globalista

O debate sobre o rendimento básico incondicional (RBI) tem tido nos últimos dias bastante destaque em Portugal. Fruto de uma conferência organizada na Assembleia da República pelo Grupo de Estudos Políticos, Movimento RBI Portugal, o Grupo de Teoria Política da Universidade do Minho e o PAN, o tema foi abordado em vários órgãos de comunicação social. O RBI, pelo facto de poder assumir vários formatos  e pela miríade de opções que permite é não só um tema complexo mas, quando analisado de forma mais detalhada, uma sucessão de vários temas diversos e complementares. Justifica-se assim o peculiar facto de um rendimento incondicional dispor tanto de acérrimos apoiantes como de opositores  em ambos os lados do espectro político.

Apesar da sua complexidade, a possibilidade de instituição de um RBI é um debate necessário e também urgente, num momento em que as questões relacionadas com a falta de emprego ou da abundância de empregos precários, em parte associados com o aumento da automação, continuam (e continuarão) na ordem do dia. Neste capítulo, as perspectivas são claras e assustadoras: nos EUA, 47% dos empregos que actualmente existem, com especial destaque para o sector dos serviços, trabalho administrativo e vendas, são susceptíveis de ser automatizados em 2050. Com o expectável aumento populacional a nível global e a menor necessidade de mão-de-obra, serão cada vez em menor número os postos de trabalho disponíveis o que agravará ainda mais a competição por esses postos, favorecendo assim a precarização do trabalho e mantendo as taxas de desemprego em valores abusivamente elevados. A instituição de um RBI pode pois assumir-se como fundamental na procura da coesão da sociedade.

As dúvidas existentes à esquerda sobre o impacto que um rendimento incondicional poderia ter nas restantes funções sociais do Estado são perfeitamente válidas. Um RBI que assente exclusivamente num cheque dado a todos os cidadãos pode efectivamente servir de justificação para o desinvestimento público em sectores como a saúde e a educação, ao abrigo de uma “liberdade de escolha” que mais não é do que um apoio ao sector privado em detrimento do sector público. São também válidas as reservas em relação ao aumento do consumo – e sobretudo sobre o tipo de consumo – associado a uma maior disponibilidade de rendimentos e os impactos ambientais associados.

Nenhum esquerdista pode, no entanto, recusar a ideia de que a existência de um RBI favoreceria a emancipação dos cidadãos, acabando com a obrigatoriedade de associar o trabalho a um rendimento. Outro aspecto importante nesta discussão é o facto de o combate às desigualdades feito exclusivamente a jusante ter falhado. Torna-se portante necessário considerar uma pré-distribuição de modo a corrigir essas desigualdades desde a raiz, capacitando e dando mais e mais justas oportunidades a todos os cidadãos, garantindo ao mesmo tempo que o Estado mantém a qualidade dos seus serviços e não promove a depleção ecológica. Não é certamente uma tarefa fácil, mas também não é impossível.

As questões relacionadas com o financiamento de um rendimento básico incondicional são, sem dúvida, as mais complexas de responder. Esse debate não deve, no entanto, impedir o debate sobre que tipo(s) de RBI poderia(m) ser instituídos. Desde logo, há diferentes escalas de aplicação do rendimento – local, nacional e, no caso europeu, ao nível da União. Um RBI poderia assumir apenas uma dessas escalas ou poderia estar presente nas três, com diferentes objectivos, de modo a que se complementassem. O tipo de “rendimento” é também variável, podendo tratar-se simplesmente de uma transferência financeira, mas podendo também assumir um carácter de um cheque a ser utilizado com um fim específico – e.g. espectáculo artístico, na compra de produtos locais – podendo assim assumir o papel de uma moeda complementar. Assim, sendo certo que a instituição de um RBI pode representar uma ameaça ao Estado social, pode também assumir-se como um projecto socialista ou como um projecto de alter-globalização e de coesão territorial.

Imaginemos que em Portugal se instituíam dois tipos de RBI complementares, um a nível autárquico e outro a nível nacional. O primeiro seria pago directamente pela autarquia enquanto o segundo seria pago pela administração central. Coloca-se desde logo uma questão: o que impede todos os habitantes de uma determinada cidade de utilizar todo este rendimento numa outra cidade, potencialmente mais próspera, prejudicando assim a autarquia que lhe financia o rendimento? Do mesmo modo, caso o rendimento dado pela administração central fosse uma simples transferência financeira, nada impediria que a sua totalidade fosse gasta em produtos importados de locais com padrões menos exigentes no respeito pelas condições laborais e/ou ambientais.

Mais do que uma simples transferência de capital, estes rendimentos poderiam assumir a forma de cheques ou vales a ser utilizados com fins específicos. O rendimento dado pela autarquia poderia assumir a função de moeda complementar, podendo apenas ser utilizado em pequenas e médias empresas presentes na cidade, estimulando assim o comércio local e promovendo a fixação da população em todo o território. Produtos alimentares, devidamente identificados como sendo de origem local, poderiam também ser adquiridos com este rendimento, promovendo assim o circuito curto e facilitando a troca directa entre o produtor e o consumidor, nomeadamente reavivando os mercados (no sentido do espaço físico) locais.

Quanto ao rendimento dado pela administração central, consistira em vales a ser utilizados em três grandes áreas: 1) sector cultural; 2) pagamento de serviços essenciais; 3) compra de produtos de primeira necessidade. O sector cultural é, em grande parte dos casos, dos principais afectados nos períodos de crise. Em primeiro lugar porque o Estado desinveste nesse sector e em segundo porque os cidadãos, vendo os seus rendimentos reduzidos, têm menos disponibilidade financeira e muitas das vezes optam por cortar nos seus gastos culturais. Um passe cultura dado a todos serviria para garantir uma dinâmica saudável num sector que é essencial para o desenvolvimento do país. O facto de um rendimento dado a todos os cidadãos do país poder ser utilizado no pagamento de serviços essenciais (e.g. electricidade e água) teria dois efeitos. O facto de se tratarem de serviços essenciais ajudaria os cidadãos com menos posses e, ao mesmo tempo, fomentaria uma redução do consumo, uma vez que caso o rendimento não fosse utilizado para o pagamento desses serviços, estaria disponível para outros fins. Adicionalmente, este rendimento dado a nível nacional serviria para adquirir produtos de primeira necessidade rotulados como sendo ecologicamente sustentáveis e/ou originários do comércio justo. Deste modo, estar-se-ia também a democratiza o acesso a este tipo de produtos e estimulando a sua produção.

A instituição de um rendimento básico incondicional não é portanto uma receita única a ser aplicada em qualquer parte do mundo e em qualquer escala. Trata-se um conceito multiforme e que deve assim ser debatido e, se for caso disso, testado. É preciso, desde a primeira hora, ter em conta as questões que se levantam sobre um tal rendimento e o impacto que poderá ter na forma como o Estado presta os seus serviços. Como demonstrado, um rendimento básico pode até servir para aumentar a coesão territorial de um país e para combater as desigualdades que se verificam de forma cada vez mais acentuada em grande parte das sociedades. Finalmente, com a expectável redução do trabalho disponível, torna-se premente separar o trabalho do rendimento associado e aí, a discussão sobre um RBI é não apenas importante, como fundamental.

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