Maquiavel no século XXI

Quando surgiram as primeiras notícias de tentativa de golpe na Turquia escrevi que, apesar de tudo, Erdogan havia sido eleito presidente da República de forma transparente, do mesmo modo que o AKP havia conseguido a maioria parlamentar – e, por transparente, quero dizer sem falsificar a votação. Assim, e por mais que repudie Erdogan e a sua visão para o país, tenho dificuldades em aceitar um golpe de Estado levado a cabo pelos militares. Aliás, todos os partidos da oposição, desde os ultra-nacionalistas aos pró-curdos (e não esqueçamos que os kemalistas são tão ou mais duros em relação aos curdos que os islamitas), foram lestos na crítica ao golpe, sabedores que são das consequências de golpes concretizados num passado recente. Muitos dos opositores de Erdogan, jovens e cosmopolitas, opuseram-se também ao golpe, não na defesa do presidente ou do seu partido, mas sim das instituições, da democracia e da separação de poderes.

Dito isto, não nos deixemos enganar: Erdogan tem como sonho principal tornar-se num sultão do século XXI, não olhando a meios para o conseguir. Dos jornalistas presos no país por criticar o poder, ao reacender da guerra contra os curdos de modo a reconquistar a maioria parlamentar, passando pela islamização das instituições e pela retirada da imunidade parlamentar (afectando sobretudo os deputados do HDP), não faltam exemplos de como Erdogan está disposto a tudo o que for preciso para dominar o país e eliminar qualquer tipo de oposição.

Cresce o número de pessoas que acredita que o “golpe” mais não foi do que uma jogada maquiavélica por parte de Erdogan para conseguir o que até aqui não tinha conseguido – alterar o regime do país, concentrando todos os poderes no presidente; ele próprio, claro está. Mesmo para aqueles que, como eu próprio, são bastante cépticos em relação a teorias de conspiração, começa a ser difícil acreditar que este golpe não foi obra do próprio Poder: toda a oposição criticou as acções militares quando o desfecho das mesmas era ainda incerto (contrariamente àquilo que fez a UE* e os EUA que apenas se pronunciaram quando o golpe já havia falhado) e até Fethullah Gülen, ex-aliado de Erdogan e agora inimigo público número um, já veio dizer publicamente rejeitar qualquer ligação aos golpistas.

“Obra de deus” foi como Erdogan caracterizou esta tentativa de golpe. Finalmente teria as condições necessárias à limpeza do país, especialmente das forças armadas. E os resultados estão à vista: em poucas horas foram presos milhares de soldados, bem como juízes, incluindo do tribunal supremo.  O futuro é incerto mas não tenhamos a inocência de pensar que Erdogan, o homem com quem os Estados da UE vergonhosamente negociaram as vidas de milhares de refugiados, não aproveitará esta oportunidade para consolidar o seu poder e a islamização da Turquia. Tivesse a UE discutido de forma séria e aberta a adesão da Turquia nas últimas décadas e talvez a história tivesse sido diferente. Agora, resta-nos olhar à distância, impotentes e esperando que a democracia triunfe.

 

*Depois de publicado este texto, alertaram-me para o tuíte de Federica Mogherini em plena fase crítica do golpe: https://twitter.com/FedericaMog/status/754068205010690048

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