Sexismo pós-moderno

Perante o abismo natalício – como se as caixinhas de chocolates com as datas marcadas que vamos limpando à medida que contamos os dias fossem uma qualquer cronologia escatológica – encontrei-me perante a necessidade de ter de comprar uma prenda para uma menina de 6 anos. Avancei confiante para o shopping center, o lugar da redenção pós-moderna como diria J. G. Ballard, aguardando uma qualquer revelação. Como nunca fui muito jeitoso para comprar prendas, a estratégica era esperar que ela se apresentasse perante mim. Como que ao profeta. A revelação, contudo, foi de outra ordem. E ainda há quem diga que o Natal já nada tem de metafísico.

Entre as escadas rolantes e o hipermercado – sim, confesso que ainda me passou pela cabeça a hipótese de ir ao hiper buscar um brinquedo Popotiano (não, esta não é uma referência literária) – chamou-me à atenção uma pop-up store, plantada no meio do corredor. No logo, lia-se Science4You. O nome cutucava-me a ponta da língua, confirmado depois pelo extenso catálogo de prémios de empreendedorismo que a start-up orgulhosamente ostenta. Detive-me por dois minutos. Olhei para a montra. Olhei para o catálogo. Olhei para quem me acompanhava. Reflecti. E levantei os olhos com a mente no século XIX.

O meu ponto é este: sugiro que listemos os artigos que aparecem fechados em invólucros cor-de-rosa. O primeiro deles intitula-se Fábrica de Sabonetes, seguido da Oficina de Tranças, da Ciência das Velas, da Fábrica de Perfumes, da Fábrica de Batons e da Fábrica de Champô e Gel de Banho. E, pronto, é isto. As meninas de 6 anos que procurem diversão na Science4You parecem ser naturalmente conduzidas ao seu papel social: ao papel de cabeleireira, de hipotético modelo ou, melhor ainda, ao papel de “simplesmente mulher”, desde que lavada e cheirosa. Já sei que me vão dizer que estou a ser radical e que não é nada disto e que até há muitas meninas a comprar o kit de paleontólogo e que não há de nada mal por também haver produtos cor-de-rosa sobre perfumes e sabonetes. Respondo com o seguinte: quantos meninos, do sexo masculino, é que já compraram a Fábrica de Sabonetes? Ou a Oficina das Tranças? Vamos mesmo ter esta discussão?

E este é recorrentemente um dos meus problemas perante o empreendedorismo. Pensar, dispensa-se. O sucesso de uma empreitada empreendedora é pura e simplesmente tabelado pelo seu volume de vendas. Toda e qualquer crítica, toda e qualquer autocrítica, perante trivialidades como a normalização ou normatização de papéis sociais, é escusada mediante a apresentação de uma folha Excel que bata certo com as placas giratórias terrestres: as placas dos mercados, do capital, e da finança. Tudo o resto é conversa. Um bom produto é um produto que vende. Nada mais interessa. Nada mais está em causa. Quando vende, é porque o público o quer, e se o público o quer muito, dá-se um prémio para que o público ainda o queira mais. E a bola de neve engrossa a cada metro que calca. Até já cobre as renas.

(Nota: texto originalmente publicado em Panorama.)

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Um novo campo político

Abriu-se um novo campo político na Europa. Um campo político que não é de direita, nem de esquerda, nem sequer de centro. É uma novidade do séc. XXI. É o campo do anti-sistema, do anti-aparelhismo e do combate à corrupção. Naturalmente, todas estas bandeiras fazem parte dos programas e ideologias de muitos outros partidos – e são bandeiras extremamente relevantes para uma agenda política séria do séc. XXI. A novidade deste novo campo político é que tais bandeiras subalternizam toda e qualquer doutrina político-económica ou visão de Estado que os seus partidos e dirigentes possam apresentar. Nenhum dos partidos deste novo campo político se lança no debate público com uma agenda de políticas públicas, propriamente dita. Nenhuma das suas figuras de proa faz furor na esfera pública pela sua visão da escola, da saúde ou da economia de um país. As suas bandeiras são as bandeiras do combate à corrupção, do fim do clientelismo partidário subsidiado por cargos públicos e do combate à promiscuidade entre público e privado, característica de Estados salobros e em auto-destruição (pelo menos no que ao contrato social diz respeito).

Neste novo campo cabem figuras e/ou partidos que vão desde Marinho e Pinto a Paulo Morais, passando pelo Podemos Espanhol e, hipoteticamente, pelo Movimento Cinco Estrelas em Itália. Para todos eles (ou quase todos eles), a divisão entre esquerda e direita já não faz sentido. São partidos e figuras, como os próprios afirmam, pós-ideológicos. São, segundo os mesmos, figuras e partidos pragmáticos, com uma missão clara e civilizadora. Os seus eleitorados são, potencialmente, universais. Não vêm nem da direita nem da esquerda. Vêm do descontentamento, do cansaço e do nojo. Poderíamos fazer aqui um programa de prós e contras sobre este novo campo político, e as suas diferentes – e tão idiossincráticas – emanações. Poderíamos discutir o quão perigoso pode ser esta linha de pensamento, precisamente por ser ideologicamente vazia, pronta a ser preenchida por um qualquer conteúdo, seja ele qual for, sem que isso desmobilize a sua base de apoio popular. Poderíamos também aqui discutir vários dos seus pontos positivos, como um combate sério e honesto à corrupção, à fraude e à evasão fiscal, acompanhado por um aprofundamento dos mecanismos de transparência e controlo cidadão.

Discuto, antes, um outro assunto. E é este o ponto principal deste artigo: o facto de este novo campo político estar a ser propositadamente encostado à esquerda, mesmo quando os seus principais protagonistas avisem que não são de esquerda (Podemos) ou nem sequer venham da esquerda (Paulo Morais foi autarca do PSD). Há uma clara manipulação mediática que se traduz numa muito clara tentativa de fazer resvalar todos estes partidos e figuras para a esquerda do espectro político-partidário. Quem não ouviu dizer que o Podemos é obviamente um partido de esquerda, como o SYRIZA? Quem não ouviu dizer que o Marinho e Pinto é um homem naturalmente da esquerda, da justiça social? Quem não ouviu já dizer que o combate à corrupção de Paulo Morais é um programa de esquerda? Já todos o ouvimos. Às vezes, de forma directa e descarada. Na maior parte delas, contudo, a mensagem passa de forma subtil, quase imperceptível, escondida e codificada em palavrões de jornalismo político que enganam os mais incautos.

Tudo isto tem um propósito. Bastante simples. Fazer crer que a esquerda está ainda mais dividida e fragmentada do que se pensava, ao mesmo tempo que a direita se aguenta sólida, firme e sem perturbações. Encostar este novo campo político, e seus protagonistas, à esquerda é um habilidoso e muito reflectido exercício político. E tem resultado. A esquerda tem a sua quota parte de responsabilidade no processo, pois parece nunca se conseguir entender, mesmo quando as pontes estão já construídas, só faltando caminhá-las. Mas é preciso estar muito atento a esta manipulação e tentar desmontá-la, sob o risco de o eleitorado de esquerda, sobretudo o menos informado, se perder para sempre.

Acerca de racionalidade

Há muitas coisas que, enquanto cidadão Europeu, me têm perturbado ao longo dos últimos anos. A lista é longa. Começa com a inversão do propósito do projecto Europeu. (Antes, um projecto de cooperação, de desenvolvimento, de alargamento dos direitos, de paz consertada. Hoje, um projecto de hierarquização de nações, de retrocesso social, de compressão e aniquilação de direitos, e de uma espécie de Guerra Fria intraeuropeia.) Continua com a falta de eficácia e solidariedade no combate às dívidas soberanas. Com a falta de fraternidade, como muito bem dizia o Jorge Pinto aqui há dias, entre Estados-membros. Com a falta de visão, a longo prazo, do que deve ser a Europa. Podia falar de tudo isto.

Mas não. Há um outro assunto que me tem vindo a perturbar ainda mais. Um assunto que, talvez por não ser tão evidente, se esconde na espuma dos dias. Se esconde por detrás de uma naturalização que diariamente lhe temos feito. Refiro-me à questão da racionalidade. E a minha constatação é a seguinte: hoje, uma coisa que não tem racionalidade económica passa a ser automaticamente irracional e, como tal, não deve ser sequer democraticamente sufragada. Ou seja, uma coisa que de um ponto de vista econométrico se apresenta como ilógica torna-se logo, por si só, irracional e, portanto, não pode ir a votos. É o expoente máximo da tecnocracia. O sonho daqueles que consideram que a política deve assentar única e exclusivamente em technicalities financeiras.

Há exemplos gritantes a este respeito. Posso dar dois. O primeiro é o caso Grego. Em Dezembro, a Grécia convoca eleições antecipadas e, desde logo, se percebe que há um “risco” grande de o Syriza ganhar. Como o Syriza defende uma reestruturação dívida e/ou uma eventual saída do Euro (agora mais moderadamente, mas chegou a colocar isso em cima da mesa) – e isso poderia lançar milhares no desemprego, iria trazer uma inflação galopante, uma desvalorização brutal da moeda, etc. – o FMI desde logo corta o financiamento ao país até ver “esclarecida” a sua posição oficial. Ou seja, como não tem lógica que os Gregos queiram viver pior, o melhor seria que nem houvesse eleições. “Mas que coisa é essa agora de o povo grego querer um partido assim no Poder?” – ecoa nos corredores da Comissão Europeia. Dá-me vontade de perguntar: mas e se os Gregos quiserem viver pior? Por outras palavras, se quiserem viver pior economicamente, mas com uma redobrada dignidade, liberdade e independência? Eu sou da opinião que uma saída do Euro pode ter consequências dramáticas, mas que temos nós com isso? Os Gregos já não podem decidir por si, sem isso acarretar sanções, reprimendas, ameaças e cortes de financiamento?

Um segundo exemplo é o discurso de Cavaco Silva no virar do ano. Cavaco, no seu tom e estilo, veio a terreiro defender que os partidos se deviam entender antes das eleições de 2015. Que isso era crucial para o bom funcionamento do país. Para o bom funcionamento da economia. Entenda-se, aqui, que os partidos de Cavaco são PS e PSD – com a bengala CDS. Uma vez mais, o que se está aqui a ensaiar é um esvaziamento do sufrágio democrático. Como quem diz “vamos lá combinar tudo antes das eleições que é para não termos nenhuma surpresa e minimizarmos a importância disto o melhor que podemos”. Cavaco, enquanto Presidente, e sem sequer se aperceber, faz algo gravíssimo: esvazia as eleições. Uma outra vez, o melhor era nem as haver. O desejo de Cavaco era o de que as eleições, concebidas em democracia como um momento de renovação e de reflexão, passassem a ser uma mera technicality de concertação. Arrisco-me mesmo a dizer que o ideal seria ficarmos aqui durante 20 ou 30 anos sem eleições – ou com eleições cujos resultados fossem previamente combinados – até resolvermos os problemas do país. Caso contrário, ainda há um resultado inesperado, e os mercados agitam-se, e estamos tramados.

Eu digo antes: eles que se agitem.

Ciclos de 40 anos, ou como a História importa

Há coisa de dias, conversava com o meu pai acerca do país, debruçado sobre um prato de bacalhau com natas. Não tinha espinhas. O país é que estava cheio delas. E daquelas bem difíceis de tirar da garganta. Há até quem fique com trauma de peixe. Falaremos disso numa outra ocasião.

Estava eu a dizer que conversava com o meu pai sobre o país. Falávamos da crise, das prisões preventivas, das prisões definitivas, dos direitos, dos deveres, da cidadania. Foi aí que as nossas sensibilidades de historiador – ele, historiador a sério; eu, um mero historiador de licenciatura – nos levavam a uma conclusão curiosa: pelo menos desde a aprovação da primeira constituição Portuguesa, isto é, desde o que é considerado por muitos como o início da época contemporânea Portuguesa, a nossa história tem-se feito sobre ciclos de 40 anos. De 40 em 40 anos, o país parece mudar. Parece querer mudar. Claro que esta cronologia, como aliás todas as outras, é fruto de uma abstração. É fruto de uma leitura. Mas a história também se faz de simbologia. É semiótica.

Atentemos então. O período que vai desde o êxodo da família real para o Brasil – processo esse que culminaria com a aprovação da constituição de 1822 – até à insurreição militar de 1 de Maio é de, sensivelmente, 40 anos. Nesses 40 anos, assistimos à reinvenção da monarquia, ao primeiro sufrágio directo em Portugal, ao surgimento de correntes liberais e do Setembrismo. Este período terminaria simbolicamente com a ascensão de Fontes Pereira de Melo. Convencionou-se chamar-lhe de Regeneração. Estávamos em 1851. Dívida, comboios e telégrafo. Modernização, como alguns lhe designaram. Certo é que este período viria a encerrar com a instalação da I República Portuguesa. 40 anos depois.

Perguntam-me: “mas a República não irrompeu só em 1910?” Sim e não. A República, na verdade, começa com o Ultimato britânico de… 1890. Exactamente 40 anos depois da Regeneração. É aí que verdadeiramente se inicia o descrédito da monarquia e se começa a falar da instalação de uma República. 1910 pode ser a data simbólica do novo regime. Mas 1890 representa, talvez, uma data política de maior relevo. Representa o virar de uma página que não voltou mais atrás.

Façamos nova conta. 1890 + 40 = 1930. Se lhe tirarmos quatro anos, estamos perante o golpe de Maio de 1926. Se lhe acrescentarmos dois, estamos perante o ano em que Salazar é proclamado primeiro-ministro e o projecto da nova constituição publicado. Uma e outra vez, é quatro décadas depois que Portugal se lê noutro virar de página. E quantos anos vivemos nós sob a ditadura do António? Mais 40, está claro. Na verdade, foram 48. 48 anos longos anos. Mas as quatro dezenas estão lá sempre. Persistentes. Resilientes. De ideias fixas.

Veio o 25 de Abril e com ele a liberdade, a democracia, os direitos. Veio também a Europa. Veio Schengen e a geração Erasmus. Veio o Euro. E veio a crise… 40 anos depois. O ano que agora termina marca precisamente os 40 anos do 25 de Abril. Abrir-se-á, com certeza, um novo ciclo na história de Portugal. Está-nos no sangue. Os sinais estão aí. Um redobrado descontentamento e contestação social. O aparecimento de novos partidos com expressão eleitoral. O enfraquecimento dos partidos de regime. Os movimentos sociais. Mas, também, os demagogos e a extrema direita.

Resta saber se nos vamos atirar para um neo-Estado Novo (que pleonasmo tão catchy) ou se vem aí uma verdadeira Regeneração, com ventos de Abril.

Editorial: por um ano irrevogavelmente novo

“In the town where i was born,
Lived a man who sailed to sea,
And he told of his life,
In the land of submarines,”

(John e Paul)

Ano novo, ideias novas. Estamos fartos deste homem. Destes homens. Desta tipologia de homens. Apelamos, então, a todos. E a apresentação deste pedido de apelo, que é irrevogável, obedece à nossa consciência e mais não podemos fazer. Apelamos hoje a um novo espaço de debate. Um novo espaço de combate. Um espaço de combate ao pensamento único. Um espaço de combate à atomização da sociedade. Um espaço de combate ao pensamento de que os anos dourados já lá vão. Ao pensamento de que já não pode haver um Estado solidário e fraterno. Ao pensamento de que os nossos direitos foram conquistas a prazo. Ao pensamento de que os mercados são mais importantes do que as pessoas. A nossa redacção está irrevogavelmente comprometida com tal. Não voltamos atrás. Nem no tempo nem no pensamento. Somos onze autores…para já. De Esquerda. Republicanos. Livres. Ao que se junta o Sr. Irrevogável, pronto a dar voz a todos aqueles que connosco partilhem desassossegos. Publicaremos textos, documentos, opiniões, relatórios. Publicaremos dúvidas, preocupações, inquietações. Até talvez haja espaço para teorias conspirativas. Mas também para a música, a arte e o cinema. Publicaremos tudo aquilo que puder ser um sério contributo para os homens dos submarinos navegarem de vez.

Ano novo, ideias novas. Por um ano irrevogavelmente novo.