Vencedor do Urso de Ouro de 2016, este filme italiano é muito mais que um documentário. Desde logo, catalogá-lo simplesmente como documentário é bastante limitativo. Todos os actores representam-se a si mesmos, é certo, mas fica a dúvida sobre até que ponto algumas das cenas podem ter sido encenadas pelo realizador Gianfranco Rosi. A fotografia é pesada e sombria – julgo que nunca se vê o céu limpo – tendo praticamente apenas planos fixos.
O filme é centrado na ilha de Lampedusa, tristemente tornada famosa por ser um dos pontos de entrada de milhares de imigrantes e refugiados nos últimos anos e, consequentemente, um dos pontos onde mais vidas se perdem – muitas vidas, milhares de vidas. O que Rosi nos mostra neste filme são precisamente essas duas Lampedusas: aquela onde se tenta que a vida corra como sempre, virada para o mar e para a pesca, e aquela que é o porto seguro após uma enorme travessia pela vida.
Quase nunca no filme essas duas realidades se cruzam, sendo a única excepção o médico que tanto é visto a fazer uma ecografia a uma recém-chegada, como a, em lágrimas e numa das cenas mais tristes do filme, afirmar que nunca ninguém se pode habituar à visão de corpos mortos, bem como tratando Samuele, o personagem principal do filme. Esta dualidade está presente o tempo todo, fazendo com que se soltem várias gargalhadas fruto das acções do pequeno Samuele – que tem um desempenho verdadeiramente excepcional – e que seja difícil conter as lágrimas quando, numa sequência bruta, se vêm vários corpos sem vida num dos barcos abordado pela marinha italiana.
Fuocoammare é o título de uma canção siciliana da II Guerra Mundial onde se canta o bombardeamento de um navio de guerra italiano e de como o mar parecia estar em chamas. O mar é o mesmo e as preocupações da “Tsa Maria” serão semelhantes às das mães dos marinheiros de então – bom tempo para que os pescadores se possam fazer ao mar. Os barcos de guerra também continuam as suas rondas mas agora não para lutar mas sim para salvar da morte milhares de desesperados.
Este não é, nem pretende ser, um filme político. O realizador abstém-se de qualquer julgamento moral, positivo ou negativo, não referindo em nenhum momento a relação entre os locais e os que chegam, assumindo assim a separação estanque entre as duas realidades da ilha. Mas olhando para as cenas de salvamento em alto mar, que indicações mais serão necessárias? Quando vemos centenas de seres humanos a sair de um mesmo barco, alguns mais mortos que vivos, alguns agredidos por razões que nunca nos serão explicadas, e ser processados com uma rapidez que denota uma prática demasiadas vezes ensaiada, como não poderemos nós, espectadores, julgar-nos a nós próprios? No processo de triagem, na chegada à ilha, há uma cena que resume todo esse julgamento, quando durante alguns dolorosos e longos segundos um olhar jovem fixa compenetradamente a câmara, como que olhando directamente para todos os que estão na sala. Efectivamente, há fogo no mar.