Fuocoammare

Vencedor do Urso de Ouro de 2016, este filme italiano é muito mais que um documentário. Desde logo, catalogá-lo simplesmente como documentário é bastante limitativo. Todos os actores representam-se a si mesmos, é certo, mas fica a dúvida sobre até que ponto algumas das cenas podem ter sido encenadas pelo realizador Gianfranco Rosi. A fotografia é pesada e sombria – julgo que nunca se vê o céu limpo – tendo praticamente apenas planos fixos.

O filme é centrado na ilha de Lampedusa, tristemente tornada famosa por ser um dos pontos de entrada de milhares de imigrantes e refugiados nos últimos anos e, consequentemente, um dos pontos onde mais vidas se perdem – muitas vidas, milhares de vidas. O que Rosi nos mostra neste filme são precisamente essas duas Lampedusas: aquela onde se tenta que a vida corra como sempre, virada para o mar e para a pesca, e aquela que é o porto seguro após uma enorme travessia pela vida.

Quase nunca no filme essas duas realidades se cruzam, sendo a única excepção o médico que tanto é visto a fazer uma ecografia a uma recém-chegada, como a, em lágrimas e numa das cenas mais tristes do filme, afirmar que nunca ninguém se pode habituar à visão de corpos mortos, bem como tratando Samuele, o personagem principal do filme. Esta dualidade está presente o tempo todo, fazendo com que se soltem várias gargalhadas fruto das acções do pequeno Samuele – que tem um desempenho verdadeiramente excepcional – e que seja difícil conter as lágrimas quando, numa sequência bruta, se vêm vários corpos sem vida num dos barcos abordado pela marinha italiana.

Fuocoammare é o título de uma canção siciliana da II Guerra Mundial onde se canta o bombardeamento de um navio de guerra italiano e de como o mar parecia estar em chamas. O mar é o mesmo e as preocupações da “Tsa Maria” serão semelhantes às das mães dos marinheiros de então – bom tempo para que os pescadores se possam fazer ao mar. Os barcos de guerra também continuam as suas rondas mas agora não para lutar mas sim para salvar da morte milhares de desesperados.

Este não é, nem pretende ser, um filme político. O realizador abstém-se de qualquer julgamento moral, positivo ou negativo, não referindo em nenhum momento a relação entre os locais e os que chegam, assumindo assim a separação estanque entre as duas realidades da ilha. Mas olhando para as cenas de salvamento em alto mar, que indicações mais serão necessárias? Quando vemos centenas de seres humanos a sair de um mesmo barco, alguns mais mortos que vivos, alguns agredidos por razões que nunca nos serão explicadas, e ser processados com uma rapidez que denota uma prática demasiadas vezes ensaiada, como não poderemos nós, espectadores, julgar-nos a nós próprios? No processo de triagem, na chegada à ilha, há uma cena que resume todo esse julgamento, quando durante alguns dolorosos e longos segundos um olhar jovem fixa compenetradamente a câmara, como que olhando directamente para todos os que estão na sala. Efectivamente, há fogo no mar.

 

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Aviação e Ambiente – novo acordo global

Acordado no final do ano passado e recentemente ratificado pela União Europeia, o acordo para o Clima, conseguido na COP21 em Paris, estipulava como limite máximo do aumento da temperatura global 1,5ºC, uma vez que um aumento de temperatura superior a este valor teria consequências graves e provavelmente irreversíveis no planeta. Assim, os Estados que assinaram e ratificaram este acordo comprometem-se a cumprir uma série de medidas que assegurem um desenvolvimento mais sustentável, nomeadamente através da redução da emissão de gases com efeito de estufa, nomeadamente o dióxido de carbono (CO2). No entanto, os sectores de transporte marítimo e aéreo foram deixados de fora desse acordo, apesar do expectável aumento de emissões associado a ambos. Esta excepção juntava-se assim a outros privilégios dificilmente justificáveis, tais como combustíveis livres de impostos.

Apesar de actualmente a percentagem de emissões de CO2 provenientes da aviação ser relativamente pequena – inferior a 5% do total – as previsões mostram que este valor pode subir até cerca de 25% em 2050. Em relação a este sector, a União Europeia havia incluído todos os voos intra-europeus, bem como todos os voos de ou para a UE, no seu mecanismo de troca de emissões. Confrontada com a forte oposição de alguns países – com a China e a Índia à cabeça – a UE decidiu “parar o relógio” e retirar os voos com origem/aterragem em espaço extra-europeu do mecanismo, sob o compromisso de um acordo a nível global, a ser decidido na Organização Internacional da Aviação Civil (ICAO, na sigla inglesa), organização pertencente às Nações Unidas.

Durante o dia de ontem deu-se um (muito pequeno) passo nesse sentido. Em Montreal, na sede da ICAO, 191 Estados chegaram a acordo sobre um plano global que responsabilize o sector da aviação pelas suas emissões e que consiste em compensar todo o aumento de emissões de CO2 a partir de 2020 com projectos que reduzam os níveis deste gás na atmosfera. Um mecanismo global de trocas de emissões (global market-based mechanism, GMBM) que sirva para limitar o aumento das emissões de gases com efeito de estufa continua em discussão.

O acordo a nível global é uma notícia positiva mas deixa muito a desejar, não sendo certo que seja capaz de responder aos desafios que se lhe apresentam. Desde logo, o acordo não impõe qualquer limite às emissões, consistindo num mecanismo de compensação pelas emissões provocadas. Em segundo lugar, a adesão a este acordo torna-se obrigatória apenas a partir de 2027 – de referir que se é verdade que algumas dezenas de Estados já se comprometeram a aderir no início da fase de adesão voluntária, com início em 2021, outros, como a Rússia ou a Índia, já afirmaram que não o farão. Finalmente, a referência ao acordo de Paris, presente no corpo do acordo em versões prévias, foi retirado, estando apenas presente no preâmbulo, o que pode apenas ser entendido como um sinal de falta de ambição.

A existência de um acordo global deve ser vista com bons olhos mas o que ontem se acordou foi um acordo mínimo. Assim, a UE deve consolidar e reforçar o seu mecanismo de troca de emissões, assegurando o seu compromisso com o limite do aumento da temperatura global em 1,5ºC. Caso contrário, todos pagaremos as consequências.

 

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Golpe no Brasil: de que lado estás?

Sem grande surpresa, a votação de ontem no Senado brasileiro confirmou a perda de mandato da Presidenta eleita Dilma Rousseff por alegados crimes fiscais e de responsabilidade. Ora, não só esses crimes não foram provados como, pelo facto de numa surpreendente segunda votação se permitir que Dilma seja candidata a cargos públicos, ficou claro que essa nunca foi a verdadeira razão deste verdadeiro auto-de-fé. Não tendo nunca aceitado a re-eleição de Dilma em 2014, os seus opositores cedo gizaram este plano. Não havendo crime de responsabilidade e mesmo assim havendo destituição trata-se de um golpe? Claramente, sim.

Os apoiantes da destituição de Dilma, justiça lhes seja feita, nunca tiveram grandes problemas em nem sequer referir as razões legais que poderiam levar ao seu afastamento da presidência. Mas se antes optavam por não o fazer, alegando uma hipotética luta contra a corrupção – e sendo eles próprios, na sua grande maioria, condenados por crimes desse cariz – nos últimos dias não houve sequer esse esforço. Veja-se por exemplo a entrevista dada pela Senadora Simone Tebet ao DN dizendo que se trata de “um julgamento político” ou, ainda de forma mais clara, as declarações do Senador Acir Gurgacz em que afirma ter a convicção de que não houve crime de responsabilidade fiscal. Mais claro era difícil.

Perante isto, há apenas dois posicionamentos possíveis: ou contra ou a favor do golpe. Pouco interessa aqui a opinião pessoal que cada um possa ter em relação a Dilma, ao PT e às suas políticas. Pouco interessa que a opinião pública brasileira possa, na sua maioria, preferir ver Dilma afastada da presidência. Em Democracia, não havendo crimes, há apenas um modo de afastar um Presidente eleito: eleições. E nessa arena democrática foi Dilma quem venceu e tem, por conseguinte, o direito a governar o país. Fechar os olhos a esta realidade é ser complacente com o golpe que a História pouco tardará a julgar.

E onde estão os que, de camisola da selecção brasileira de futebol ao peito, se manifestavam contra Dilma (e contra a corrupção, diziam)? A grande maioria deles, uma vez que desejava pura e simplesmente conseguir deste modo o que não havia conseguido nas urnas, calar-se-á imediatamente. Mas depois há os outros, que se refugiam na confortável generalização que diz que os políticos brasileiros são todos iguais e corruptos, esquecendo assim que a própria Dilma mostra a falsidade dessa afirmação. Outros ainda, achando-se muito democratas, assumirão até que este afastamento não foi legal mas que, sendo por um “bem maior”, é aceitável. Mas não, não é. A democracia não é um interruptor que se possa acender e apagar ao sabor dos desejos momentâneos.

O futuro não é difícil de imaginar, bastando olhar para o que Michel Temer, um dos golpistas-mor, fez enquanto presidente interino: políticas de cortes nos programas sociais e um governo sem minorias e sem mulheres. Um retracto não do verdadeiro Brasil mas de um Brasil à imagem dos que destituíram Dilma Rousseff. Nesse capítulo, e apesar do número absurdamente baixo de mulheres no Senado brasileiro, não deixa de ser relevante a distribuição dos seus votos: 6 em 61 a favor e 7 em 21 contra o impeachment.

Por fim, deixo um desafio àqueles que estão sinceramente convencidos que a destituição de Dilma foi por um bem maior e que a partir de agora o Brasil entrará no rumo certo. Escrevam uma carta endereçada a vocês mesmos, descrevendo o vosso estado de espírito e explanando todas essas vossas esperanças. Guardem-na e abram-na daqui a um par de anos. Verão como afinal as coisas estão piores. Por agora e consumado o golpe, começa a luta.

Foto Oficial Presidenta Dilma Rousseff.  Foto: Roberto Stuckert Filho.
Foto Oficial Presidenta Dilma Rousseff. Foto: Roberto Stuckert Filho.

Muito mais que apenas futebol

 

Abril de 1958, os campeonatos nacionais a chegar ao fim e o Mundial da Suécia à porta. Em França, o AS Saint-Étienne defende o título de campeão nacional, tendo como avançado Rachid Mekhloufi, nascido na Argélia e também militar no exército francês. Lesionado durante um jogo, fica internado dois dias no hospital, onde a visita de dois conhecidos mudaria para sempre a sua vida e o faria entrar no restrito clube das lendas.

A guerra pela independência argelina levava já uns anos e os massacres somavam-se uns aos outros. Originário da cidade de Sétif, Rachid tinha ainda cravada na sua memória a recordação da chacina aí levada a cabo pelas tropas francesas em 1945, durante uma manifestação de alegria pelo fim da segunda guerra mundial e que se transformara em manifestação anti-colonialista. Assim, quando Mokhtar Arribi e Abdelhamid Kermali, também eles de Sétif e jogadores de futebol em França, o convidam a fugir – tornando-se, pela sua ligação ao exército, num desertor – e a juntar-se à selecção da nação de um país que ainda não existia, não houve qualquer hesitação. A este grupo juntar-se-iam mais nove jogadores (dois deles acabariam detidos na fronteira à saída de França) que, chegados a Túnis, se tornariam na selecção de futebol da “Front de Libération Nationale”, lutando, no campo de jogo, pela independência da Argélia.

Para termos uma ideia da coragem destes homens, basta dizer que todos viviam de modo confortável em França, tendo mesmo alguns deles representado a selecção nacional e sendo, portanto, potenciais convocados para o Mundial na Suécia, onde a França acabaria por conseguir o terceiro posto. Deixar a sua antiga vida para trás, quando a independência argelina era ainda uma incerteza – os acordos de Évian, que resultaram num cessar-fogo entre as partes envolvidas no conflito franco-argelino, seriam assinados apenas quatro anos mais tarde – é um acto político de enorme dimensão. Realizando dezenas de jogos em vários países árabes, do Leste europeu e do Sudeste asiático (onde encontrariam Ho Chin Minh e Vo Nguyen Giap), esta selecção foi uma autêntica bandeira móvel pela causa independentista.

Esta história é resgatada pelo livro “Un maillot pour l’Algérie” (Dupuis, 2016) que, no formato banda-desenhada, dá a conhecer ao grande público um episódio pouco conhecido da guerra pela independência argelina. A narrativa serve também para lembrar como o futebol, enquanto fenómeno cultural, popular e de massas, tem um poder político inegável. Muitas vezes usado para legitimar regimes autoritários e anti-democráticos (veja-se a Argentina de Videla durante o Mundial de 1978), o desporto-rei é também muitas vezes uma arma pela democracia e pelas liberdades. De equipas como o FC Sankt Pauli a jogadores como Sócrates e a sua democracia corintiana, não faltam exemplos de futebol associado às causas justas. E como seria bom que estes exemplos, passados e presentes, servissem de inspiração ao futebol dos nossos dias. Até porque em campo são onze contra onze mas, fora dele, tudo é muito mais que apenas futebol.

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Racismo em português – A desconstrução de um mito

Racismo em português – O lado esquecido do colonialismo junta os textos e os vídeos (num dvd que acompanha o livro) que foram sendo publicados no jornal Público ao longo do ano de 2015, quando se celebraram 40 anos de independência na maioria das ex-colónias portuguesas em África. Este livro não é, portanto, um livro de investigação académica, mas sim um livro de relatos, de histórias, de vivências, de pensamentos e de opiniões, o que faz com a sua leitura seja fluida. Com mais de cem entrevistas feitas em Angola, Guiné-Bissau, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe e Moçambique, a jornalista Joana Gorjão Henriques tinha um objectivo declarado: perceber até que ponto foi o colonialismo português mais brando que o de outros países e entender quais são, ainda hoje, as consequências de séculos de políticas coloniais.

Publicado pela Tinta-da-China, este livro começa a ser lido e entendido pela (mais uma) excelente capa: fundo negro, como negra é a pele da população nativa das ex-colónias, bota branca, como branca é a pele dos colonizadores, desmesuradamente grande e salpicada de um vermelho a fazer lembrar a cor do sangue. Contrariamente ao usual, é também este vermelho-sangue que colora as folhas de guarda, tanto no início como no final do livro.

Este livro tem o enorme mérito de desconstruir a ideia de que houve apenas um tipo de colonialismo português em África. Pelo contrário, Portugal promoveu vários colonialismos, criando tensões entre comunidades e etnias que ainda hoje se fazem sentir. É também um livro importante na medida em que tenta desmontar a ideia do lusotropicalismo de Gilberto Freyre, teoria que, ainda nos dias de hoje, continua a ter enorme popularidade junto dos portugueses. Bruno Vieira Amaral, na crítica que faz ao livro no sítio do Observador, afirma, por duas vezes (como querendo convencer-se a si próprio), que Racismo em português corre o risco de “apresentar como intacto um mito [lusotropicalismo] já desfeito várias vezes”. Mas será que foi mesmo? Como é, em 2016, estudado o período colonial? Seremos um país que já fez as pazes com os esqueletos que guarda no armário? O simples facto de nos considerarmos “descobridores” e não “conquistadores” como os espanhóis não dirá já quase tudo sobre o modo como, enquanto país, vemos o nosso colonialismo?

Foi o colonialismo português diferente dos restantes? Certamente que sim, do mesmo modo que os outros também foram diferentes entre si. Terá sido mais brando? Lendo os relatos apresentados neste livro torna-se difícil responder que sim a essa questão. De um sistema de apartheid em Moçambique e Angola, à escravatura (mascarada de “contratados”) em São Tomé e Príncipe em plena 2ª metade do século XX, não faltam exemplos que desmentem a ideia da brandura do colonialismo português.

Mas nem sempre a agressão se fazia de forma física. Para controlar os nativos, era necessário rebaixá-los, despi-los de toda e qualquer forma de identidade e moldá-los à medida do colonialismo. Para além da obrigação da alteração do nome de modo a soar português e do vergonhoso estatuto do indigenato que pretendia fomentar a assimilação, há um exemplo quase cómico que mostra até que ponto o colonialismo português não admitia variações à sua visão de identidade. Conta Fernanda Pontífice, ex-ministra da Educação e Cultura de São Tomé e Príncipe, que, numa composição sobre frutos pedida na escola primária, todos aqueles que não fossem frutos existentes em Portugal (tais como a maioria dos frutos existentes no seu país) eram riscados e não considerados.

O colonialismo fará sempre parte da história portuguesa; e, sendo História, não temos que nos sentir culpados por aquilo que os nossos antepassados fizeram. Não devemos, ou melhor, não podemos, é permitir que se prolongue o mito do colonialismo brando. Temos que, sem qualquer tipo de complexo, olhar para a nossa própria história e, assumindo os erros cometidos, com ela aprender. Este não é um livro neutro e nem o pretende ser. Não é tampouco um livro de respostas, sendo antes um livro que coloca muitas e boas questões, concentradas nas seis perguntas com que autora termina a introdução e de onde destaco uma: até quando iremos contribuir para uma mentalidade acrítica sobre um dos fenómenos mais violentos da nossa história? Nesse sentido, uma das frases de Frantz Fanon, um dos principais pensadores do (pós)colonialismo, continua actual: “Ó meu corpo, faça sempre de mim um homem que questiona!”

“Racismo em Português: O Lado Esquecido do Colonialismo”, de Joana Gorjão Henriques (Tinta da China) – Preço €14,31 (inclui DVD)

 

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Maquiavel no século XXI

Quando surgiram as primeiras notícias de tentativa de golpe na Turquia escrevi que, apesar de tudo, Erdogan havia sido eleito presidente da República de forma transparente, do mesmo modo que o AKP havia conseguido a maioria parlamentar – e, por transparente, quero dizer sem falsificar a votação. Assim, e por mais que repudie Erdogan e a sua visão para o país, tenho dificuldades em aceitar um golpe de Estado levado a cabo pelos militares. Aliás, todos os partidos da oposição, desde os ultra-nacionalistas aos pró-curdos (e não esqueçamos que os kemalistas são tão ou mais duros em relação aos curdos que os islamitas), foram lestos na crítica ao golpe, sabedores que são das consequências de golpes concretizados num passado recente. Muitos dos opositores de Erdogan, jovens e cosmopolitas, opuseram-se também ao golpe, não na defesa do presidente ou do seu partido, mas sim das instituições, da democracia e da separação de poderes.

Dito isto, não nos deixemos enganar: Erdogan tem como sonho principal tornar-se num sultão do século XXI, não olhando a meios para o conseguir. Dos jornalistas presos no país por criticar o poder, ao reacender da guerra contra os curdos de modo a reconquistar a maioria parlamentar, passando pela islamização das instituições e pela retirada da imunidade parlamentar (afectando sobretudo os deputados do HDP), não faltam exemplos de como Erdogan está disposto a tudo o que for preciso para dominar o país e eliminar qualquer tipo de oposição.

Cresce o número de pessoas que acredita que o “golpe” mais não foi do que uma jogada maquiavélica por parte de Erdogan para conseguir o que até aqui não tinha conseguido – alterar o regime do país, concentrando todos os poderes no presidente; ele próprio, claro está. Mesmo para aqueles que, como eu próprio, são bastante cépticos em relação a teorias de conspiração, começa a ser difícil acreditar que este golpe não foi obra do próprio Poder: toda a oposição criticou as acções militares quando o desfecho das mesmas era ainda incerto (contrariamente àquilo que fez a UE* e os EUA que apenas se pronunciaram quando o golpe já havia falhado) e até Fethullah Gülen, ex-aliado de Erdogan e agora inimigo público número um, já veio dizer publicamente rejeitar qualquer ligação aos golpistas.

“Obra de deus” foi como Erdogan caracterizou esta tentativa de golpe. Finalmente teria as condições necessárias à limpeza do país, especialmente das forças armadas. E os resultados estão à vista: em poucas horas foram presos milhares de soldados, bem como juízes, incluindo do tribunal supremo.  O futuro é incerto mas não tenhamos a inocência de pensar que Erdogan, o homem com quem os Estados da UE vergonhosamente negociaram as vidas de milhares de refugiados, não aproveitará esta oportunidade para consolidar o seu poder e a islamização da Turquia. Tivesse a UE discutido de forma séria e aberta a adesão da Turquia nas últimas décadas e talvez a história tivesse sido diferente. Agora, resta-nos olhar à distância, impotentes e esperando que a democracia triunfe.

 

*Depois de publicado este texto, alertaram-me para o tuíte de Federica Mogherini em plena fase crítica do golpe: https://twitter.com/FedericaMog/status/754068205010690048

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Vai-se andando

Parecia inevitável. E, ao mesmo tempo, parecia impossível. As casas de apostas colocavam Portugal longe do título e três empates na fase de grupos deixavam antever o pior. Por outro lado, havia uma certa confiança que abraçava os jogadores e Fernando Santos, o tal que dizia que voltaria a casa apenas no dia 11 de Julho. Até o meu pai, sempre tão lesto na profecia de desgraças e a pessoa mais céptica que conheço, dizia que era desta. O próprio universo parece ter-se organizado de modo a facilitar-nos a vitória. E depois, fez-se história.

A selecção nacional esteve (muito) longe de praticar o futebol bonito ao qual nos habituou num passado recente; mas foi sempre um grupo unido e foi sempre nessa união que esteve o nosso segredo. Deste Europeu, levaremos como grandes jogadas os golos de calcanhar e de cabeça de Cristiano Ronaldo, o golo de Éder e pouco mais. Mas como grandes acções levaremos muito mais. O “se perdermos que se foda”, o Pepe a vomitar na final, os penteados de Quaresma, a confiança de Fernando Santos, o treinador-adjunto Ronaldo e tantos, tantos outros. Ah, recordo cada um destes momentos e não evito o sorriso que me sai automaticamente.

Não sabia que se podia ficar tão feliz com uma vitória num jogo de futebol. Sendo adepto do FCP, não me faltaram vitórias, incluindo a nível internacional e com várias delas celebradas no estádio, mas nunca fiquei tão contente como no domingo à noite. As lágrimas, essas, continuam a ser um exclusivo para o meu Amarante FC que, também esta época e pela primeira vez, me fez chorar de alegria por um jogo de futebol.
Esta foi a selecção que melhor representou o espírito do país: se é verdade que as coisas não iam correndo mal, também é verdade que não iam correndo bem. E há lá alguma coisa mais portuguesa que o “vai-se andandismo”? Esta foi também a vitória de um Portugal plural, cosmopolita e aberto aos imigrantes, com o melhor jogador em campo na final nascido no Brasil e com o marcador do golo (obrigado Éderzito!) nascido na Guiné-Bissau.

E tudo isto é apenas futebol. Mas é tudo tão mais do que futebol. É paixão, é aquela irracionalidade a que todos temos direito, é sonhar que podemos ser maiores do que somos, é errar, é chorar, é rir, é resistir, é ganhar e é perder. É a vida e é viver. Ainda hoje, de cada vez que revejo o jogo entre Portugal e Inglaterra no Euro 2000, cerro os punhos em sinal de alegria a cada um dos três golos portugueses desse evento mítico. Graças a esta vitória, não terei que rogar pragas ao Griezmann durante décadas, como o pai teve que rogar ao Platini. Por isso e pela alegria que nos deram, um muito obrigado.

PS: Não sei se é hábito dar uma alcunha à selecção durante um campeonato da Europa mas, caso seja, proponho que esta equipa seja apelidada de “Os vai-se andando”. Ou então apenas “Os portugueses”. É tudo o mesmo, ao fim e ao cabo.

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Do medo à esperança

As notícias que foram chegando a Portugal nas últimas semanas davam como praticamente certa a vitória do candidato da extrema-direita na segunda volta das eleições austríacas. Após um resultado acima do esperado na primeira volta, Norbert Hofer parecia ter a eleição garantida. Isto tendo em conta a análise dos principais órgãos de comunicação social – portugueses e europeus – que nem sempre se deram ao trabalho de fazer uma investigação jornalística com o nível de detalhe suficiente. O facto de um candidato de extrema-direita ter um resultado elevado é, e deve ser sempre, razão para notícia mas é preciso saber destrinçar os factos à luz da história eleitoral do país em causa e saber fazer uma avaliação crítica dos mesmos. Enquanto o foco esteve virado para Hofer, pouca atenção foi dada ao seu rival, o ecologista Van der Bellen, que, contados os votos, acabou por se tornar no novo presidente do país. À semelhança de Portugal, o presidente da República austríaca não tem poder executivos. Ainda assim, sendo o chefe de Estado, as suas ideias e o seu poder – real ou simbólico – têm uma grande importância.

Após anos de uma gestão deficiente da crise económica a nível europeu e de uma vergonhosa actuação perante a crise de refugiados, a extrema-direita tem conseguido crescer em vários pontos do continente. Ainda ontem, nas eleições ao parlamento cipriota, o partido neo-nazi ELAM conseguiu, pela primeira vez na história do país, ter representantes eleitos. O medo do regresso a um passado obscuro e não muito distante na história europeia, alimentado por uma comunicação social preguiçosa e alimentadora de informação incorrecta, parece pois estar a tomar conta de muitos cidadãos europeus. Por outro lado, há também uma esperança que, embora quase sem cobertura mediática, vai fazendo o seu caminho e o caso austríaco é paradigmático.

Filho de refugiados, cosmopolita e com uma visão ecologista, Van der Bellen representa bem todos aqueles que não nos conformamos com um regresso às soberanias nacionais e a um continente com as fronteiras encerradas. A defesa de um comunitarismo soberanista – infelizmente tão cara a uma certa esquerda europeia – tem nas ideias do novo presidente austríaco uma alternativa radicalmente diferente. Após o primeiro chefe de executivo da Esquerda Europeia, temos agora o primeiro chefe de Estado ecologista e progressista. Aqueles que achavam que a União Europeia estava condenada a cair sobre o peso da sua burocracia e do seu conservadorismo ou a ceder lugar à extrema-direita e ao Estado-nação como soberano exclusivo, terão que repensar a sua avaliação. Aqueles que defendem o centrão, onde dificilmente se distingue um partido social-democrata de um partido conservador, como solução para todos os males também se verão obrigados à mesma análise. Com poucos votos de diferença, a vitória de Van der Bellen transformou o que seria uma vitória do medo numa vitória da esperança. Que outros lhe saibam seguir o caminho.

 

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Isto muda tudo

Publicado originalmente em Setembro de 2014 e em português no final de Fevereiro deste ano – este livro é ambicioso no seu título: This changes everything (Tudo pode mudar, na tradução portuguesa). Isto muda tudo. Se o título não permite adivinhar a que corresponde o “isto” nem o que será mudado, o sub-título escolhido pela autora é clarificador: “Capitalismo vs Clima”. O conflito e a impossível relação entre o actual modelo de capitalismo, assente no livre-comércio e nas energias fósseis, e a sustentabilidade do nosso planeta, quantificada no aumento máximo da temperatura média do planeta em 2ºC em relação aos níveis pré-industriais, é o elemento central do livro.

Num estilo que lhe é muito próprio, Naomi Klein apoia todas as suas afirmações de forma exaustiva, como que querendo mostrar que por mais aterrador que seja o descreve, tal corresponde apenas e só a factos concretos e comprováveis. Se esta fundamentação exaustiva pode, por vezes, resultar demasiado pesada à leitura do livro, nunca se torna impeditiva de uma leitura agradável e fluída. À semelhança dos seus livros anteriores – “A doutrina de choque” e “No logo” – também este tem a capacidade de nos assustar com a realidade. E o que está em jogo é o nosso próprio futuro colectivo.

Analisando o impacto das alterações climáticas, no presente e no futuro, Klein traça um cenário quase-apocalíptico, desde o aumento de fenómenos extremos como furacões e tufões até longos períodos de cheias e secas. O ponto em comum de todos estes fenómenos é o facto de as principais vítimas serem aqueles que menos contribuíram para as alterações climáticas, nomeadamente os habitantes dos países mais pobres. Nos países do Norte global os efeitos nefastos far-se-ão também sentir mas, como demonstrado, serão uma vez mais as populações mais pobres a sofrer as principais consequências.

Ao terminar o livro fica-se com uma sensação mista. Por um lado, parece que chegamos a um ponto de não-retorno, arrastados por um modelo de capitalismo selvagem e cego e que sobretudo desde os anos 80 tem levado tudo à sua frente. A manutenção de um modelo de livre-comércio extremo e sem barreiras, dependente da extracção de combustíveis fósseis em locais cada vez mais remotos e recorrendo a técnicas cada vez mais perigosas e inquinadoras, são tidos como responsáveis pelo aumento constante das emissões de gases de efeito de estufa nos últimos anos, excepção feita a 2009, no auge da actual crise financeira. Tudo isto sabendo-se há muito os efeitos que essas emissões têm no imediato e a longo prazo. A autora é também clara ao afirmar que as grandes organizações ambientalistas não são, em si mesmas, a garantia de uma defesa eficaz e coerente de um modelo de desenvolvimento diferente. Aliás, é dado um exemplo de uma das principais associações ambientalistas americana que, no seu próprio terreno, procede à extracção de combustíveis fósseis.

Por outro lado, o livro dá-nos também alguma esperança. Tendo percorrido o globo à procura de exemplos de blockadias (locais onde as populações se juntam para tentar evitar a concretização de algum projecto que lhes será nocivo), a autora fala-nos de algumas derrotas mas também de várias vitórias, de como grupos de cidadãos de todas as idades e de várias origens se juntaram e conseguiram dizer Não às grandes empresas multinacionais. Da Grécia à Nigéria, do Equador até ao Canadá natal de Klein, são vários e bem documentados estes casos, bem como o da ligação em rede destas lutas. Lendo o livro mais de um ano após a sua saída, podemos também saber o que aconteceu em alguns destes locais: Balcombe, localidade britânica que resistiu à exploração de gás de xisto no seu solo, preferindo avançar para um modelo cooperativo de energias renováveis, viu-se obrigado a desistir do seu projecto, devido às alterações legislativas levadas a cabo pelo governo conservador de David Cameron; nos Estados Unidos, aquele que é provavelmente o projecto mais citado no livro, o oleoduto “Keystone XL” que deveria importar petróleo extraído de forma altamente poluente das areias betuminosas canadianas, foi rejeitado por Barack Obama, após enorme mobilização, com especial destaque para as comunidades indígenas, dos dois lados da fronteira.

Este livro é também um apelo à esquerda. Historicamente, a relação da esquerda com a ecologia nem sempre foi pacífica. Com o seu olhar meticuloso, Naomi Klein apela às forças de esquerda de todo o mundo a que façam da defesa da ecologia uma das suas principais bandeiras e que a usem como ferramenta para atingir outros objectivos políticos, com especial incidência na melhor redistribuição de recursos. A um problema desta escala, a resposta deve assentar em soluções radicais e a autora aponta alguns caminhos: transição energética para as energias renováveis e descentralizadas, financiado por um New Deal à escala global.

Mais do que um simples livro, este é também um guia para a esquerda ecologista. Quando os resultados da cimeira COP21 ficaram aquém do necessário e na ausência de um compromisso global vinculativo para limitar as emissões de gases de efeito de estufa, é impossível ficar indiferente ao seu conteúdo. Este livro muda efectivamente tudo. Com toda a informação que nos dá, poderemos continuar a virar a cara à realidade?

O mal menor

Há números que são mais eficazes que qualquer texto a dar ideia da dimensão de um conflito. Na Síria, desde o início da guerra civil, doze porcento da população morreu ou ficou ferida. Paremos um instante para digerir este valor. Doze porcento, mais do que uma a cada dez pessoas. Quanto a mortos, o número já ultrapassou o meio milhão. Como termo de comparação, as estimativas mais elevadas sobre o número de mortes na guerra dos Balcãs é de 250 mil. Metade. Números, uma vez mais, mostram claramente quem é o responsável pela grande maioria das vítimas: o ditador Al-Assad. Como pode então haver um tão grande silêncio, uma tão grande complacência em relação ao ditador que não aceita sequer que se discuta a sua saída?

Com um artigo forte e um título provocador – “Porque não se manifestam os pacifistas do ocidente contra Assad?” – a jornalista italiana Francesca Borri coloca-nos, enquanto sociedade, várias questões. Por que razão não nos mobilizamos contra uma ditadura que tantas vítimas tem provocado do mesmo modo que nos manifestamos noutras ocasiões? A resposta, conclui, parece ser o facto de Assad ser laico o que, aos nossos olhos, permitiria a aceitação de todo o tipo de crimes, desde que impedindo os islamitas de tomar o poder. Apesar de sanguinário, surge, aos olhos de muitos democratas, como o mal menor. Se em relação à Jugoslávia já se podiam seguir os eventos diariamente, no que toca à Síria há um acompanhamento ao instante, graças às redes sociais. Não é certamente pela falta de conhecimento dos crimes cometidos pelo regime que preferimos Assad a uma alternativa.

Após um apoio inicial aos rebeldes, maioritariamente laicos, que inicialmente se revoltaram contra o regime, o crescimento e o controlo de algumas áreas do país por parte de grupos islamitas, seguida da criação e ascensão do daesh, fizeram-nos ficar de pé atrás. Os exemplos vindos de outros países da Primavera Árabe, certamente não ajudaram. Se é verdade que em alguns meios a luta dos curdos, pela revolução dentro da revolução e pelo seu experimentalismo democrático, mantiveram a nossa atenção, a luta de grupos como o Exército Livre da Síria deixou de ter qualquer destaque à medida que foram perdendo força no país. Agora, os únicos países que parecem ter uma ideia clara para o que querem do país – Irão, Rússia, Arábia Saudita, Turquia – estão preocupados com tudo menos com a democracia e a vida dos cidadãos sírios.

Se, como União Europeia, tivéssemos, desde a primeira hora, apoiado uma alternativa à ditadura de Assad – e essa oportunidade existiu durante os primeiros meses após o levantamento – o cenário poderia ser diferente. Se tivéssemos ajudado e preparado a juventude síria que agora ou fica no país para morrer ou arrisca a sua vida fugindo, não estaríamos certamente a defender o mal menor. Como nota Borri, parece que “somos apenas pela democracia se os seus cidadãos forem como nós”. E não pode ser assim. A defesa pela democracia tem que ser intransigente e incondicional. Se tenho uma alternativa a Assad a propor? Infelizmente não. Mas não nos deixemos apanhar a defender o mal menor como a boa solução.