Bons ventos e bons casamentos

Finda a segunda ronda de consulta aos partidos políticos espanhóis e dada a impossibilidade de encontrar uma maioria dos deputados que apoie a investidura de um novo governo, o rei Felipe VI viu-se obrigado a convocar novas eleições. A data já está marcada: 26 de Junho, mais de seis meses após a eleição inicial e três dias após o referendo sobre o Brexit. Os próximos meses, entre as questões da maior ou menor autonomia das diferentes regiões espanholas, da economia e do sempre elevado desemprego, serão pois decisivos na definição do futuro do país. Sendo de esperar, novamente, um resultado sem vencedor absoluto, espera-se um jogo onde todos terão que ceder.

É difícil fazer a comparação entre Portugal e Espanha, de tão diferentes que são as realidades políticas mas, apesar disso, uma coisa é certa: apenas um novo governo espanhol progressista poderá servir os interesses de uma frente europeia anti-austeridade e que ajude à construção de uma União Europeia mais democrática e igualitária. Se parece ter ficado claro que uma coligação que junte Ciudadanos e Podemos é impossível, é importante que os partidos de esquerda mantenham o diálogo e a abertura para uma coligação que, caso os resultados sejam favoráveis, permita a governação. Não é ainda claro quem saiu mais beneficiado ou mais prejudicado pelo facto de não se ter conseguido um acordo de governo mas caso se confirme a candidatura conjunta do Podemos (e os vários movimentos que lhe estão mais ou menos associados) e a Izquierda Unida, a possibilidade de uma maioria de esquerda no parlamento é bastante real.

Até há bem poucos meses, eram poucos os que em Portugal acreditavam num governo socialista apoiado pelos partidos à sua esquerda. Apesar disso, a “geringonça” ganhou vida e instituiu uma nova forma de governar. E os resultados positivos estão à vista, tanto a nível nacional como a nível internacional.

Para além da reposição salarial, da reposição dos feriados retirados pelo anterior governo, temos, após anos de seguidismo e baixo-orelhismo, um governo que assume as suas posições, independentemente de estas chocarem com a hegemónica perspectiva austeritária com epicentro em Berlim. Nesse sentido, é exemplar a comparação entre a reacção de Passos Coelho à vitória do Syriza na Grécia e a declaração anti-austeridade assinada por Costa e Tsipras há poucas semanas. Resta, é certo, um longo caminho a percorrer, mas serão poucos os que à esquerda e apesar de todas as limitações, prefeririam que este governo não tivesse visto a luz do dia. Da Grécia de Tsipras ao Reino Unido de Corbyn, passando por todos os movimentos transnacionais, este é o momento de lutar por uma Europa dos povos verdadeiramente democrática. Um passo nesse sentido pode ser dado em Espanha, bastando que invertam o nosso ditado e vejam que pelo menos ao nível de alianças políticas lhes chegam bons ventos e bons casamentos.

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Sim, é golpe

Confirmou-se ontem a aprovação por parte da Câmara dos Deputados brasileira da abertura do processo de “impeachment” contra a presidenta Dilma Rousseff. Este processo deverá agora ser confirmado pelo Senado o que, a confirmar-se, levará à suspensão de Dilma até 180 dias para fins de investigação. Apesar de todo o ruído à volta deste caso, as razões alegadas para o “impeachment” são, claramente, insuficientes e sem base legal. Isto parece interessar pouco àqueles que se querem vir livres de Dilma e do PT a todo o custo, desrespeitando de forma aberta o voto de milhões de brasileiros, bem como a própria democracia. “Impeachment” sem crime é pois um golpe à vista de todos.

Ontem escreveu-se uma página negra na história democrática brasileira. Foi penoso assistir às horas de debate que mais se assemelharam a um circo ou a uma feira de variedades, com declarações a roçar o delírio. Conto com os dedos de uma mão o número de vezes que as razões evocadas para o “impeachment” (as famosas pedaladas fiscais) foram evocadas – bem menos vezes do que “o fim dos comunistas no Brasil”. Não foi sem nojo que fui seguindo a votação, acompanhando uma página de Twitter que, para cada deputado e à medida que iam votando, ia indicando os seus problemas com a justiça. Ouvir a palavra “democracia” e “a luta contra a corrupção” ser evocada por quem votou pelo “impeachment” e está a ser investigado por uma panóplia de crimes é ofensivo e insultuoso para todos os democratas.

Houve, felizmente, quem estando na oposição ao governo e a Dilma tenha tido a coragem de apontar o óbvio: a democracia é para respeitar. Uma palavra para os corajosos deputados do PSOL que, fazendo oposição, foram sempre vocais a favor do respeito pelos princípios democráticos e contra uma tentativa ilegítima de usurpação do poder pela quadrilha de Temer e Cunha. Neste jogo de crimes, o PT está longe de estar isento mas tal não deve – não pode – legitimar a destituição de uma presidente que, contrariamente à grande maioria dos deputados que contra ela votaram, não tem uma única acusação de carácter criminal contra si.

O processo de “impeachment” acaba apenas de começar mas, se o objectivo principal é a estabilidade do Brasil, está condenado a falhar. A confirmar-se a destituição de Dilma, apenas novas eleições podem legitimar um novo presidente. Caso contrário, assistiremos a um arrastar da crise até 2018, data do próximo acto eleitoral presidencial. A partir de ontem, o tempo de cerrar fileiras à volta dos defensores da democracia começou. A partir de ontem, todos os brasileiros perceberam que o seu voto vale menos que as jogadas parlamentares. Ontem, todos perderam, mas foi sobretudo a democracia a principal vítima deste golpe.

 

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Não é mentira, mas deveria ser

A Assembleia da República discutiu e chumbou ontem os dois votos de condenação propostos pelo PS e pelo BE em relação à condenação de 17 activistas angolanos. Recorde-se que estes activistas foram condenados, após uma série de peripécias jurídicas, a penas de prisão efectiva sob acusação de “actos preparatórios de rebelião e associação de malfeitores”. Isto por estarem reunidos numa leitura à volta do livro “Da ditadura à democracia”. Para além das muitas dúvidas legais sobre o teor da acusação, sobram dúvidas sobre a arbitrariedade da decisão e das penas atribuídas a cada um dos acusados. Esta decisão, para além se poder revelar um erro táctico por parte do poder angolano, mostra o carácter ditatorial do regime, deixando claro o receio que este sente em relação a qualquer tipo de oposição.

Num comentário na sua página pessoal, Rui Tavares aponta para um aspecto fundamental: “Ao governo cabe a diplomacia. À Assembleia da República cabe tomar posições políticas, representar os cidadãos e defender a sua liberdade.” O governo, pela voz do MNE foi aliás bem mais assertivo do que o habitual, indicando esperar que o restante do processo judicial “obedeça aos princípios fundadores do Estado de Direito, incluindo o direito de oposição por meios pacíficos às autoridades constituídas”. Infelizmente, essa defesa da liberdade e do Estado de direito não foi ontem promovida pela casa que representa a democracia em Portugal. Não é mentira de 1 de Abril, mas deveria ser.

Não sendo exactamente uma surpresa, uma vez que vem na sequência de outros votos de condenação similares, não deixa de ser de estranhar, embora por diferentes motivos, a rejeição dos votos de condenação propostos na AR por parte de alguns deputados do PSD e por parte do PCP. Do lado social-democrata, deputados como Duarte Marques apelidaram a decisão do tribunal angolano de “vergonhosa” tendo, apesar disso, votado contra os votos de condenação. A (tentativa de) justificação pode ser lida na sucessão de contradições que é a declaração de voto assinada pelo deputado, juntamente com quatro colegas de bancada. Do lado comunista, os argumentos da não ingerência na política de outros países (um critério claramente ambíguo, tendo em conta outras posições do partido) e do impacto que tal voto poderia ter nas “relações de Portugal com a CPLP e com o continente africano” são pouco convincentes.

Um voto de condenação por parte da AR teria certamente um forte significado político e é impossível não pensar nas potenciais consequências que tal decisão poderia ter em relação aos muitos milhares de portugueses que vivem em Angola. Apesar disso, nenhum negócio, nenhuma compra ou venda e nem nenhuma troca de favores pode justificar o virar a cara à falta de democracia e aos direitos humanos. E é precisamente nesses domínios que Portugal pode e deve tentar assumir um papel destacado em todos os níveis: junto da União Europeia, da ONU e, não menos importante, da CPLP.

Bruxelas

Não me é ainda fácil comentar com o afastamento necessário os ataques terroristas que atingiram Bruxelas no dia 22. Os locais escolhidos pelos assassinos são-me demasiado familiares, pontos de passagem frequente, minha e dos que me são próximos e, de forma algo egoísta, é impossível não pensar “e se”. Bruxelas juntou-se assim ao triste rol de cidades visadas por ataques feitos sob a bandeira jiadista. De Tunis a Beirute, de Abidjan a Bruxelas, a mensagem que os extremistas tentam passar é clara: ninguém está a salvo e todos devem ter medo. A minha reacção primária é, no entanto, no sentido oposto. Não lhes darei esse o prazer de alterar o meu modo de vida um milímetro que seja e, dois dias depois, este parece ser o espírito da grande maioria dos belgas – note-se que há uma “marcha contra o medo” convocada para Bruxelas no próximo domingo.

Infelizmente, contra o extremismo não bastarão declarações de boa vontade. Igualmente, o securitarismo e a perda de direitos e de liberdades, para além de ter um sucesso dúbio na prevenção de futuros ataques, servirão para criar ainda mais ódio. Estes ataques serviram já o populismo e a demagogia de vários governos, nomeadamente o polaco que se apressou a afirmar que não aceitará os refugiados que já se havia comprometido receber ao abrigo do programa europeu. Isto apesar de todos os terroristas de dia 22 (à semelhança de quase todos os outros que têm cometido ataques em solo europeu) serem cidadãos nascidos e criados na Europa. Mais do que do encerramento de fronteiras precisamos de uma Europa verdadeiramente livre e unida, onde as suas forças de segurança e serviços de inteligência esqueçam os seus nacionalismos e partilhem de forma eficiente as informações de que dispõem. Contrariamente ao que aconteceu em França, o governo belga está, pelo menos para já, a resistir às pulsões ultra-securitárias, não tendo activado o estado de emergência.

A rejeição do securitarismo não pode nem deve significar um virar a cara ao problema. Olhando para a origem geográfica de muitos dos que partem dos países europeus para a Síria, há um padrão claro: jovens, residentes em bairros mais ou menos periféricos, vítimas de uma discriminação estrutural e com uma identidade fluída. Têm pois que ser tomadas medias concretas para evitar a radicalização. No imediato, é preciso investigar imãs radicais que professam o seu ódio livremente e encerrar todas as mesquitas ilegais. Em paralelo, é essencial que os Estados invistam mais na integração e inclusão das suas comunidades imigrantes, devendo também estas ser capazes de se esforçarem mais, saindo da bolha em que muitas vezes se encerram.

Uma das fotos mais marcantes após os atentados mostra uma criança bloqueada no campo de refugiados de Idomeni, na Grécia, segurando um cartaz onde se lê “sorry for Brussels”. Muitos órgãos de comunicação social traduziram esta mensagem como se de um pedido de desculpas se tratasse. Não me parece que seja esse o sentido da mensagem, onde também se pode ler um sentimento de empatia pelas vítimas do jiadismo em Bruxelas, mas também na Síria e no Iraque. Nestes países, milhares de pessoas como essa criança vivem permanentemente ameaçados pelo terrorismo, o que nos deveria envergonhar a todos pelo acordo que os países europeus assinaram com a Turquia e fazer pensar na urgência de acolher os refugiados de um modo digno, porque uma vida belga ou francesa não pode nunca ter mais valor que uma vida síria ou iraquiana. Quanto a pedidos de desculpas por parte de muçulmanos, não só não os quero, como os rejeito, pois são eles as primeiras vítimas daqueles que dizem professar a sua religião. Aliás, se a bomba que explodiu em Maelbeek estava a poucos metros da Comissão Europeia, estava também a poucos metros da principal mesquita belga, no que, simbolicamente, representa também um ataque ao próprio Islão.

Clinton vs Trump

Os resultados de mais uma “super terça-feira” nas eleições primárias para a escolha dos candidatos à presidência dos Estados Unidos trouxeram algumas conclusões importantes. Embora restem ainda vários estados a ir a votos e se mantenha possível uma candidatura independente e de peso no campo republicano, parece ser cada vez mais certo que o embate final será entre Hillary Clinton pelo partido Democrata e Donald Trump pelo partido Republicano. Se, do lado democrata, Hillary acaba por ser a candidata “lógica”, nada, ainda há bem poucos meses, faria prever que uma personagem como Donald Trump pudesse conseguir a nomeação republicana, assente num discurso extremamente agressivo e, em vários capítulos, bem mais conservador do que aquilo a que o próprio Trump havia habituado os americanos – note-se que, ao longo dos anos, o candidato tem apoiado sobretudo o partido democrata.

Contrariamente à grande maioria dos prognósticos feitos antes do início do processo de eleições primárias, Hillary Clinton não está a ter um simples passeio até à nomeação. Sendo verdade que os resultados das primárias realizadas ontem (16/03) parecem ter confirmado o seu favoritismo e afastado definitivamente (?) Bernie Sanders da nomeação, não é menos verdade que o senador do Vermont se revelou um adversário difícil de bater. Com 74 anos e um longo historial na defesa dos direitos cívicos nos Estados Unidos, Sanders tem sido uma verdadeira lufada de ar fresco nesta campanha, falando directamente aos 99% dos americanos que vivem com maiores ou menores dificuldades, num país onde as desigualdades sociais se têm alargado. Com um discurso aguerrido e sensato, o senador atraiu muitos americanos, sobretudo jovens, ansiosos por encontrar uma alternativa ao establishment que os possa ajudar a definir um rumo novo para o país. Não sendo ainda impossível, a sua nomeação está cada vez mais distante mas, apesar disso, Sanders é já um dos vencedores destas eleições.

No que diz respeito ao partido Republicano, aquilo que começou por parecer uma impossibilidade, parece-se cada vez mais a uma inevitabilidade. Donald Trump, magnata americano e estrela mediática, está a um pequeno passo de conseguir a nomeação como candidato à presidência. Pelo caminho ficaram já Ben Carson – um dos principais candidatos antes do início das votações – e, desde ontem, Marco Rubio que se assumia como o candidato da lucidez quando comparado com Trump ou Ted Cruz.

O que mais assusta nesta previsão é o facto de Donald Trump assentar a sua campanha no discurso do ódio e da violência, assumindo-o como sendo simplesmente politicamente incorrecto mas necessário. O cansaço dos americanos em relação à política pode ajudar a perceber o fenómeno mas não é a única explicação. Olhando para o perfil dos votantes em Trump, percebe-se que tem mais sucesso junto dos cidadãos mais atingidos pelos problemas económicos bem como dos que têm menor nível de educação. Estes são dois aspectos que reflectem também as desigualdades do país e que urge corrigir.

A confirmar-se o cenário Hillary contra Trump, não pode haver lugar a dúvidas. Entre uma candidata que, tendo várias falhas, dá garantias de uma presidência na linha de Obama e um candidato irascível e com um discurso racista e xenófobo, não pode haver hesitações. Democratas e republicanos terão que saber optar por aquele que será o melhor presidente para o seu país e, por extensão, para o próprio planeta.

A UE no meu álbum fotográfico

No artigo publicado no passado dia 1 de Março, José Vítor Malheiros (JVM) lança um desafio aos leitores. Pede-nos o colunista que pensemos nas nossas memórias e nos eventos marcantes das últimas décadas e que contemos quantos associamos à União Europeia (UE). Num exercício de antecipação, JVM assume que nenhum desses eventos está ligado à UE, concluindo que uma vez que esta “não está associada a nada de particular e, principalmente, não está associada a nada de que nos possamos orgulhar”, “não aparece no nosso álbum de fotografias”. Pois bem, decidi aceitar o desafio e, começando no final da década de 80, quando nasci, fui olhando para o meu álbum fotográfico, tentando perceber se a UE estava realmente ausente.

Numa das primeiras fotografias que encontro, vejo-me mascarado de palhaço, com alguns brinquedos. Após um sorriso inicial e prestes a virar a página do álbum, convencido que ali não havia sequer uma tonalidade de UE, paro para reflectir. Talvez à época ainda não existisse mas, hoje em dia, aquele eu em criança estaria, graças à legislação europeia, certamente a vestir roupas devidamente fabricadas, sem o recurso a químicos perigosos. Os brinquedos na minha mão estariam, tal como as roupas, abrangidos por uma lei europeia que assegura a sua segurança. Penso que esta coincidência será apenas uma excepção à regra indicada por JVM. Continuo a folhear e vejo-me, com uns 9 ou 10 anos, em Genebra, na Suíça. Ah! lembro-me bem dessa viagem, no nosso mítico Opel Vectra (ao que parece, 3 estrelas no índice de segurança da NCAP, apoiado pela UE), de Amarante para o mundo. Viajar sem pressas e sem parar nas fronteiras. Esperem lá, agora que penso melhor, lembro-me de termos ficado parados algum tempo na fronteira entre a França e a Suíça, mas de certeza que a UE não tem nada a ver com o tema.

Passo do formato físico para o digital e vejo as fotografias que tenho guardadas no computador. Lá estou eu na universidade, a estudar as diferentes directivas, leis e regulamentos de qualidade e ambiente, a grande maioria instituída pela UE. Continuo no mundo universitário e entre uma cerveja e outra vou parar às fotos do meu Erasmus. Lituânia! Quem diria que algum dia iria viver num dos Estados Bálticos (se bem que para a minha avó estive sempre na Rússia). As fotos sucedem-se: Polónia, Letónia, Estónia, fartei-me de passear e sem parar em fronteiras, excepção feita à Bielorússia, claro, pois está fora de Schengen e da UE. Tantas caras e tantas recordações, tantos Amigos (assim mesmo, dos de maiúscula) espalhados pelos quatro cantos do continente e que só pude conhecer graças à bolsa do Erasmus.

Terminados os estudos, o trabalho. Em primeiro lugar, au pair em Paris, para onde fui de um dia para o outro. E pensar que, nos anos 60, os meus avós tiveram que mover mundos e fundos para fazer esta mesma viagem. Depois de Paris, Bruxelas, o primeiro estágio “a sério”. Não fosse a bolsa do programa Leonardo da Vinci e, muito provavelmente, nunca o poderia ter feito. Segue-se Milão, Parma e novamente Bruxelas. Felizmente só preciso de fazer a minha declaração de rendimentos no país em questão uma vez que, também graças à UE, os Portugal tem acordos de troca de informação com estes parceiros.

Bem, devo mesmo ser um caso especial pois, para onde quer que olhe parece-me que vejo a UE e, quase sempre, pelos bons motivos. Arriscando também um prognóstico, acho que se os leitores da minha geração fizerem este exercício, as conclusões serão semelhantes. Poderíamos também analisar os acontecimentos históricos – pegando no exemplo da Malala Yousafzai referido por JVM, bastaria dizer que antes do prémio Nobel, venceu o prémio Sakharov do Parlamento Europeu – mas acho que as histórias de cada um de nós, europeus, servem para mostrar que a UE é uma constante nos nossos álbuns fotográficos.

Agora, enquanto oiço a nona de Beethoven, espero que a minha companheira, não portuguesa e que conheci enquanto trabalhava em Portugal graças às facilidades criadas pela UE, chegue a casa. Será melhor ir adiantando o jantar mas estou sem grande inspiração. Uma coisa, no entanto, é certa, será algum produto devidamente rotulado como sendo de agricultura biológica (bolas outra vez a UE e o seu trabalho ao barulho). Com a data do meu aniversário a aproximar-se vou também pensando em quem convidar para a festa. A UE, essa, não será certamente necessário convidar pois comigo sabe que pode sempre sentir-se em casa, tal como eu me sinto em casa nela.

O RBI como projecto alter-globalista

O debate sobre o rendimento básico incondicional (RBI) tem tido nos últimos dias bastante destaque em Portugal. Fruto de uma conferência organizada na Assembleia da República pelo Grupo de Estudos Políticos, Movimento RBI Portugal, o Grupo de Teoria Política da Universidade do Minho e o PAN, o tema foi abordado em vários órgãos de comunicação social. O RBI, pelo facto de poder assumir vários formatos  e pela miríade de opções que permite é não só um tema complexo mas, quando analisado de forma mais detalhada, uma sucessão de vários temas diversos e complementares. Justifica-se assim o peculiar facto de um rendimento incondicional dispor tanto de acérrimos apoiantes como de opositores  em ambos os lados do espectro político.

Apesar da sua complexidade, a possibilidade de instituição de um RBI é um debate necessário e também urgente, num momento em que as questões relacionadas com a falta de emprego ou da abundância de empregos precários, em parte associados com o aumento da automação, continuam (e continuarão) na ordem do dia. Neste capítulo, as perspectivas são claras e assustadoras: nos EUA, 47% dos empregos que actualmente existem, com especial destaque para o sector dos serviços, trabalho administrativo e vendas, são susceptíveis de ser automatizados em 2050. Com o expectável aumento populacional a nível global e a menor necessidade de mão-de-obra, serão cada vez em menor número os postos de trabalho disponíveis o que agravará ainda mais a competição por esses postos, favorecendo assim a precarização do trabalho e mantendo as taxas de desemprego em valores abusivamente elevados. A instituição de um RBI pode pois assumir-se como fundamental na procura da coesão da sociedade.

As dúvidas existentes à esquerda sobre o impacto que um rendimento incondicional poderia ter nas restantes funções sociais do Estado são perfeitamente válidas. Um RBI que assente exclusivamente num cheque dado a todos os cidadãos pode efectivamente servir de justificação para o desinvestimento público em sectores como a saúde e a educação, ao abrigo de uma “liberdade de escolha” que mais não é do que um apoio ao sector privado em detrimento do sector público. São também válidas as reservas em relação ao aumento do consumo – e sobretudo sobre o tipo de consumo – associado a uma maior disponibilidade de rendimentos e os impactos ambientais associados.

Nenhum esquerdista pode, no entanto, recusar a ideia de que a existência de um RBI favoreceria a emancipação dos cidadãos, acabando com a obrigatoriedade de associar o trabalho a um rendimento. Outro aspecto importante nesta discussão é o facto de o combate às desigualdades feito exclusivamente a jusante ter falhado. Torna-se portante necessário considerar uma pré-distribuição de modo a corrigir essas desigualdades desde a raiz, capacitando e dando mais e mais justas oportunidades a todos os cidadãos, garantindo ao mesmo tempo que o Estado mantém a qualidade dos seus serviços e não promove a depleção ecológica. Não é certamente uma tarefa fácil, mas também não é impossível.

As questões relacionadas com o financiamento de um rendimento básico incondicional são, sem dúvida, as mais complexas de responder. Esse debate não deve, no entanto, impedir o debate sobre que tipo(s) de RBI poderia(m) ser instituídos. Desde logo, há diferentes escalas de aplicação do rendimento – local, nacional e, no caso europeu, ao nível da União. Um RBI poderia assumir apenas uma dessas escalas ou poderia estar presente nas três, com diferentes objectivos, de modo a que se complementassem. O tipo de “rendimento” é também variável, podendo tratar-se simplesmente de uma transferência financeira, mas podendo também assumir um carácter de um cheque a ser utilizado com um fim específico – e.g. espectáculo artístico, na compra de produtos locais – podendo assim assumir o papel de uma moeda complementar. Assim, sendo certo que a instituição de um RBI pode representar uma ameaça ao Estado social, pode também assumir-se como um projecto socialista ou como um projecto de alter-globalização e de coesão territorial.

Imaginemos que em Portugal se instituíam dois tipos de RBI complementares, um a nível autárquico e outro a nível nacional. O primeiro seria pago directamente pela autarquia enquanto o segundo seria pago pela administração central. Coloca-se desde logo uma questão: o que impede todos os habitantes de uma determinada cidade de utilizar todo este rendimento numa outra cidade, potencialmente mais próspera, prejudicando assim a autarquia que lhe financia o rendimento? Do mesmo modo, caso o rendimento dado pela administração central fosse uma simples transferência financeira, nada impediria que a sua totalidade fosse gasta em produtos importados de locais com padrões menos exigentes no respeito pelas condições laborais e/ou ambientais.

Mais do que uma simples transferência de capital, estes rendimentos poderiam assumir a forma de cheques ou vales a ser utilizados com fins específicos. O rendimento dado pela autarquia poderia assumir a função de moeda complementar, podendo apenas ser utilizado em pequenas e médias empresas presentes na cidade, estimulando assim o comércio local e promovendo a fixação da população em todo o território. Produtos alimentares, devidamente identificados como sendo de origem local, poderiam também ser adquiridos com este rendimento, promovendo assim o circuito curto e facilitando a troca directa entre o produtor e o consumidor, nomeadamente reavivando os mercados (no sentido do espaço físico) locais.

Quanto ao rendimento dado pela administração central, consistira em vales a ser utilizados em três grandes áreas: 1) sector cultural; 2) pagamento de serviços essenciais; 3) compra de produtos de primeira necessidade. O sector cultural é, em grande parte dos casos, dos principais afectados nos períodos de crise. Em primeiro lugar porque o Estado desinveste nesse sector e em segundo porque os cidadãos, vendo os seus rendimentos reduzidos, têm menos disponibilidade financeira e muitas das vezes optam por cortar nos seus gastos culturais. Um passe cultura dado a todos serviria para garantir uma dinâmica saudável num sector que é essencial para o desenvolvimento do país. O facto de um rendimento dado a todos os cidadãos do país poder ser utilizado no pagamento de serviços essenciais (e.g. electricidade e água) teria dois efeitos. O facto de se tratarem de serviços essenciais ajudaria os cidadãos com menos posses e, ao mesmo tempo, fomentaria uma redução do consumo, uma vez que caso o rendimento não fosse utilizado para o pagamento desses serviços, estaria disponível para outros fins. Adicionalmente, este rendimento dado a nível nacional serviria para adquirir produtos de primeira necessidade rotulados como sendo ecologicamente sustentáveis e/ou originários do comércio justo. Deste modo, estar-se-ia também a democratiza o acesso a este tipo de produtos e estimulando a sua produção.

A instituição de um rendimento básico incondicional não é portanto uma receita única a ser aplicada em qualquer parte do mundo e em qualquer escala. Trata-se um conceito multiforme e que deve assim ser debatido e, se for caso disso, testado. É preciso, desde a primeira hora, ter em conta as questões que se levantam sobre um tal rendimento e o impacto que poderá ter na forma como o Estado presta os seus serviços. Como demonstrado, um rendimento básico pode até servir para aumentar a coesão territorial de um país e para combater as desigualdades que se verificam de forma cada vez mais acentuada em grande parte das sociedades. Finalmente, com a expectável redução do trabalho disponível, torna-se premente separar o trabalho do rendimento associado e aí, a discussão sobre um RBI é não apenas importante, como fundamental.

A chaga do desemprego

Em 1937, George Orwell publica The road to Wigen Pier, onde relata o que viu na sua visita a um Norte da Inglaterra arrasado pela miséria e pelo desemprego. Referindo-se a um dos desempregados que contactou, Orwell escreve o seguinte:

“Alf Smith is merely one of the quarter million [de desempregados], a statistical unit. But no human being finds it easy to regard himself as a statistical unit. (…) Alf Smith is bound to feel himself dishonoured and a failure. Hence that frightful feeling of impotence and despair which is almost the worst evil of unemployment.”

Oitenta anos depois, a análise feita por Orwell continua a fazer todo o sentido. Após um período de emprego quase pleno, sobretudo numa Europa a precisar de se reconstruir após a segunda Grande Guerra, a globalização desregulada e a emergência da automação e de novas tecnologias como parte de uma nova revolução industrial, fizeram com que o número de desempregados aumentasse. Em lugar de se tentar distribuir de forma mais equitativa o emprego existente, a resposta tem sido, no mínimo, antagónica: mais horas de trabalho por semana e mais anos de serviço. Caso não sejam tomadas medidas estruturais, o futuro não parece ser muito reconfortante: o número de cidadãos que se sentem “desonrados e um falhanço” continuará a aumentar, o que terá efeitos imprevisíveis numa sociedade cada vez menos coesa.

A um novo problema não se pode responder com soluções antigas. A criação de emprego não pode tampouco assentar exclusivamente na necessidade de crescimento económico e na produção e consumo, uma vez que tal modelo depende da exploração dos recursos do planeta que, sendo limitados, são finitos. Como nota Orwell, o sentimento de impotência e desespero é provavelmente o pior mal do desemprego. E alguém desesperado é muito mais susceptível de aceitar condições de trabalho extremamente adversas e injustas. Casos como o da Work4U tornar-se-ão certamente cada vez mais comuns. É portanto essencial reformar o conceito de trabalho e tal passa também por separá-lo da necessidade de ter um salário associado.

Uma alteração deste tipo marcaria a entrada numa fase de pós-capitalismo e implica uma séria de transformações noutros domínios. Desde logo, é necessário garantir que aqueles que desempenham tarefas não remuneradas e que actualmente não têm qualquer tipo de rendimento associado, têm condições de poder viver condignamente. É também essencial que aqueles que têm mais rendimentos sejam mais taxados, de modo a que o Estado possa garantir os serviços que lhe estão associados. Mais do que uma fonte de rendimento, um emprego tem que ser uma fonte de realização pessoal.

A economia de partilha – que tem nas tecnologias uma enorme fonte de evolução – bem como o sector cooperativo desempenharão certamente um papel importante nessa transição. Há, no entanto, uma série de riscos associados à economia de partilha que, nos casos mais conhecidos, do Uber ao AirBnB, tem promovido concorrência desleal entre trabalhadores, bem como a menor regulação nos seus sectores de actividade. Apesar disso, projectos de economia de partilha “a sério” têm feito o seu caminho, desde grupos de compra colectivos até sítios de troca de objectos usados.

O objectivo a que devemos apontar enquanto sociedade deve portanto ser o do pleno emprego e, não menos importante, do emprego digno. Ora, tal só será realidade quando os cidadãos tiverem as redes de segurança suficientes de modo a que não se vejam na obrigação de aceitar um emprego que os explore de forma injusta. A existência de um rendimento básico incondicional poderia ser a melhor forma de garantir que tal fosse realidade. Há muitas questões ligadas a tal rendimento que devem ser respondidas – desde logo, qual seria o impacto nas restantes funções sociais do Estado – mas não faz sentido pensar num futuro onde a automação será cada vez mais comum e onde o conceito de trabalho seja revisto, sem pensar neste tipo de rendimento. Nenhuma sociedade aguenta taxas de desemprego elevadas (em alguns países, cerca de 50% dos jovens) durante muito tempo. Para evitar uma mudança repentina e incontrolável é necessário começar desde já a pensar em que futuro queremos e dar passos firmes nessa direcção.

A autofagia da esquerda francesa

A eleição presidencial em França terá lugar apenas daqui a um ano mas há já bastante tempo que, nos bastidores, se vão posicionando potenciais candidatos. Esta eleição é olhada com mais atenção do que o habitual, consequência dos bons resultados que a extrema-direita francesa, representada pela Frente Nacional, tem conseguido em sucessivas eleições, das europeias às regionais. Se é claro que a candidata deste campo ideológico será Marine Le Pen, à direita e à esquerda há menos certezas. À direita, o ex-presidente Nicolas Sarkozy enfrenta dificuldades em afirmar-se como o melhor candidato d’Os Republicanos. À esquerda, o actual presidente François Hollande seria o candidato natural do PSF a uma re-eleição, não sendo, no entanto, de descartar a possibilidade de um candidato saído de uma eleição primária de toda (ou quase, como veremos) a esquerda francesa.

Lançado em 10 de Janeiro de 2016 por um grupo de políticos e intelectuais, o apelo a uma eleição primária para a escolha de um candidato único de toda a esquerda e ecologistas foi fazendo o seu caminho. O próprio presidente Hollande, embora ainda não se tenha pronuncado sobre o tema, poderia, de acordo com alguns dos seus colaboradores, olhar para o apelo com bons olhos. A opinião dos eleitores de esquerda parece ser clara. De acordo com uma sondagem, 81% dos simpatizantes de esquerda afirmam ser desejável uma eleição primária, sendo que 74% afirma mesmo que tal método de escolha é fundamental para assegurar a passagem à segunda volta da eleição presidencial. Nessa mesma sondagem, 74% dos inquiridos mostra-se favorável à presença do actual presidente como candidato na eleição primária.

Se estes resultados são bastante elucidativos acerca da vontade dos potenciais votantes, nem todos parecem concordar com este método. Apenas um dia após a publicação da referida sondagem, Jean-Luc Mélenchon, co-presidente do Partido de Esquerda e um opositor das eleições primárias, anunciou a sua candidatura presidencial, mesmo sabendo que o Partido Comunista Francês, seu parceiro na Frente de Esquerda, está empenhado na procura de um candidato único. Mélenchon é um repetente, tendo nas eleições presidenciais de 2012 conseguido uns honrosos 11,1%, pelo que o anúncio da sua candidatura, com tanta antecedência, parece ter como objectivo marcar posição e boicotar o processo de primárias ainda antes do seu início.

A realidade actual é, no entanto, bem diferente da de há quatro anos. O modo como Hollande lidou com uma crise financeira à escala europeia e nacional, o envolvimento em conflitos militares no estrangeiro, a crise dos refugiados e os atrozes ataques terroristas em solo francês, vieram desgastar a esquerda e dar força a uma extrema-direita que, muitas vezes, se tentou combater adoptando o seu discurso e propostas. A estratégia de Hollande parece resumir-se a tentar passar à segunda volta e, então, tendo Marine Le Pen pela frente, apelar a uma frente Republicana que lhe possa dar a vitória. Mas, mais do que 2012, as próximas eleições presidenciais francesas podem parecer-se com as de 2002, quando Jean-Marie Le Pen enfrentou Jacques Chirac na segunda volta. A eleição primária para escolha de um candidato único de esquerda – com ou sem Mélenchon – pode ser o único meio de evitar este cenário e de evitar a autofagia da esquerda francesa.

O emblema na lapela

No seu famoso poema sobre Portugal, Alexandre O’Neill fala do país como a “questão que tem consigo mesmo”, sendo não apenas um seu remorso, mas um remorso de todos nós. Os últimos dias têm desafiado a sua visão. O desenrolar das negociações relativas ao orçamento de Estado para 2016 entre o governo português e a Comissão Europeia – que, ao que tudo indica, se aproximam de um final que convém a ambas as partes – foi seguido pelos partidos de direita com grande agressividade e sem grandes remorsos pela situação em que deixaram o país. Após quatro anos em que o governo PSD/CDS tentou mostrar que não havia alternativas às políticas de golpe até ao osso causadas pela austeridade cega e desmesurada, a simples tentativa de negociação, de igual para igual, parece ser inaceitável para aqueles que, de forma muito complacente, sempre se prestaram a seguir indicações.

O modo como o actual governo negoceia em Bruxelas é, desde logo, uma lufada de ar fresco. A austeridade não funcionou e continuar a insistir num modelo de corte pelo corte é um erro. O OE 2016 apresentado por Portugal à CE já serviu pelo menos para mostrar que há sempre alternativas, bastando vontade e uma ponta de coragem. Serviu também para mostrar que a direita portuguesa parece estar mais preocupada em preservar o seu legado austeritário do que em defender os interesses do país e da UE, sendo as tristes declarações de Manfred Weber no Parlamento Europeu, logo secundadas por Paulo Rangel, disso um exemplo claro. É claro que PSD e CDS podem discordar do modo como o actual governo pretende gerir o país mas as críticas até agora feitas, sempre apoiadas na comunicação social por articulistas bem alinhados com a linha ideológica do anterior governo, mais se assemelham a um boicote fruto do ressabiamento. Neste capítulo, destaque para a indicação dada pelo CDS sobre o seu voto contra o OE 2016, ainda antes de conhecer o documento, no que pode ser considerado, no mínimo, incoerente.

A oposição à política da austeridade não é uma luta apenas portuguesa. Veja-se o governo grego que, apesar de ter sido obrigado de forma vergonhosa a aceitar mais austeridade, continua a ser uma voz contra essa política, bem como o governo italiano que nos últimos dias tem levantado a sua voz contra a falta de flexibilidade por parte da CE. O ministro italiano da economia diz que “não pedem nada de novo, apenas coisas que já existem nas regras europeias”. Este momento deve servir também para desmistificar o bicho-papão “Europa”, usado para significar tudo e nada, sendo crucial reformular a política europeia antes que seja tarde de mais. O europeísmo é uma necessidade e a busca de um modelo de desenvolvimento alternativo deve ser feita explorando as possibilidades dentro dos tratados já existentes e, caso não seja possível, alterando-os.

Durante demasiado tempo tem a “Europa” sido usada como a causa de todos os males, seja por uma certa parte da esquerda que preferiu abdicar da luta pela reformulação do projecto europeu, seja por uma parte da direita que busca na “Europa” um justificativo para as suas opções ideológicas que apenas têm prejudicado Portugal. Os ex-governantes do PSD e CDS bem podem apregoar o seu patriotismo e usar o emblema à lapela mas este será sempre de plástico, que era mais barato.