Ainda sobre educação

As alterações levadas a cabo pelo governo ao sistema de ensino em Portugal vieram, uma vez mais, colocar a educação no topo da agenda mediática. À acusação feita pela direita parlamentar de proceder a estas alterações por mero ímpeto reformista, o ministro Tiago Brandão Rodrigues foi claro e directo, dizendo que “o modelo anterior estava errado e era nocivo”. O modo como se estrutura o sistema educativo num país é essencial para o seu futuro. Exige portanto o maior consenso possível entre os diferentes actores: partidos políticos, professores, pais e alunos. Sendo certo que o consenso absoluto não será possível, importa analisar os estudos científicos feitos relativos às diferentes áreas da educação e importa sobretudo aprender com o que já foi feito.

O fim dos exames nos 4º e 6º ano, o fim da Prova de Avaliação de Conhecimentos e Competências (PACC) para professores e mais recentemente o fim dos cursos vocacionais durante o ensino básico, são três das principais medidas já apresentadas. O sistema educativo, pelo impacto que tem no país e pelo tempo necessário até que se possa avaliar o impacto das alterações feitas, exige que haja uma certa continuidade no seu acompanhamento. Importa pois clarificar que, contrariamente ao que alguns dos críticos destas alterações têm dado a entender, não se trata de destruir o que estava feito, mas sim de recuperar o sistema que existia antes das modificações ideológicas instituídas pelo ex-ministro Nuno Crato. E olhando para os resultados dos testes PISA, o sistema educativo português estava no bom caminho antes dessas alterações, tendo, após uma melhoria constante, atingido a média da OCDE em 2012. Quanto aos exames nos 4º e 6º ano, apresentados por PSD e CDS como o garante de um ensino “exigente e não facilitista”, basta comparar o que se faz nos restantes países para perceber que Portugal era quase a única excepção.

A definição de um modelo educativo deve ser científica, devendo para tal recorrer-se aos especialistas mais qualificados, e também política, no sentido em que é necessário antes de qualquer alteração definir qual o objectivo primordial da escola. Mais do que formar profissionais, a escola deve ser capaz de formar cidadãos. Aqueles que tiveram a sorte de ter tido professores que os marcaram e ajudaram ao longo do seu processo de formação pessoal não foi por estes os terem preparado para ter bons resultados académicos, mas sim por os terem preparado para ser melhores homens e mulheres.

Um modelo educativo que se preocupe em formar cidadãos deve opor-se à padronização das escolas, tendo a obrigação de promover a proximidade entre a sociedade, a escola, os alunos e os professores, com programas que se adaptem às especificidades da região. Os professores devem ter a liberdade suficiente para fugir da rigidez dos programas estabelecidos, adaptando-se às idiossincrasias dos alunos. Neste capítulo a classe docente tem uma responsabilidade acrescida, devendo apelar ao sentido crítico dos alunos e, sempre que possível, envolvendo-os de forma activa na tomada de decisões e na própria definição das temáticas a ser estudadas.

 

A este respeito, permitam-me citar António Sérgio que, numa conferência em Janeiro de 1918 dizia o seguinte: “(…) a incompetência da escola não seria tão grande se o objectivo do ensino fosse encher, digamos assim, os estudantes, com o abstracto conhecimento das afirmações da ciência. Mas o objectivo não é, não deve ser esse: é fazer a cultura de cada espírito, emancipar os indivíduos, servir o progresso social; é treinar as inteligências, a fim de as tornar cada vez mais plásticas, universalistas e libertas de limitações, como exige a moderna democracia. (…) O objecto do ensino, em resumo, é fomentar a capacidade de um desenvolvimento contínuo, de uma racionalização intérmina da experiência, preparando os portugueses para uma vida mais humana, mais progressiva, mais fecunda, dentro de uma forma social mais justa.”

 

Advertisement

O ano mais quente de sempre

Graças ao relatório científico publicado pelo NOAA (National Oceanic and Atmospheric Administration) no passado dia 20, ficamos a saber que o ano de 2015 bateu todos os outros, tornando-se no ano mais quente desde que há registos. Sendo esta informação o suficiente para nos inquietarmos, o facto de o anterior máximo anual ter sido registado no ano de 2014 e de 15 dos 16 anos mais quentes terem sido registados desde 2001, prova que há uma tendência acelerada e constante de aumento da temperatura média mundial. Se é verdade que uma parte da responsabilidade do aumento da temperatura no ano de 2015 pode ser atribuída ao facto de o fenómeno do El niño ter sido um dos mais intensos das últimas décadas, os cientistas são unânimes ao atribuir às acções antropogénicas a quota principal dessa responsabilidade. Por entre conflitos, crises financeiras e outros problemas que abalam o mundo, a crise climática não tem recebido a atenção necessária. E isso coloca-nos a todos em risco.

Com a revolução industrial e o triunfo dos combustíveis fósseis, o mundo entrou numa nova fase. A qualidade de vida a nível global melhorou e a população foi aumentando, perpetuando assim a necessidade de cada vez mais combustíveis. Quando o petróleo começava a faltar, logo se desenvolviam tecnologias para perfurar em maior profundidade. O papel que a utilização de combustíveis fósseis – da sua extracção à combustão – tem no aquecimento global e nas alterações climáticas é conhecido há vários anos. Apesar disso, as fontes energéticas alternativas e renováveis tardam em se afirmar, fruto de um lobby dos combustíveis fósseis muito poderoso mas sobretudo fruto da necessidade constante de mais energia, associada a um modelo de globalização que não considera os factores ambientais (nem os sociais, diga-se). São pois estas as razões principais da contribuição humana para as alterações climáticas: um modelo capitalista assente na ausência de fronteiras e na redução ao máximo de custos – não internalizando os custos sociais e ambientais no produto final – e um modelo de desenvolvimento assente na obsolescência programada, na necessidade constante de consumo e de crescimento económico.

Foi com o objectivo de obter um acordo global que pudesse limitar as alterações climáticas que quase 200 líderes mundiais se juntaram no final do ano passado na COP21, em Paris. Sendo de louvar o facto de se ter conseguido um acordo – algo que vinha falhando em cimeiras anteriores – e de se apontar para um aumento máximo de 1,5ºC da temperatura média global, torna-se cada vez mais claro que um acordo de boas vontades não chegará para cumprir esse objectivo. Os mais afectados serão, como até aqui, os mais frágeis e mais pobres. Isto aplica-se tanto ao nível dos países – os mais pobres terão menor capacidade de responder aos desafios que lhes serão colocados – como ao nível das diferentes comunidades dentro de um mesmo país – os mais pobres serão empurrados para locais mais susceptíveis de ser afectados. O tempo começa a ser escasso e serão precisos líderes à altura do desafio e capazes de desafiar o status quo. As decisões não serão fáceis mas terão que ser tomadas, de forma democrática e negociada.

É errado pensar que eventuais melhorias ao nível tecnológico poderão vir a remediar o que temos feito de errado, mitigando a nossa responsabilidade. Soluções mais ou menos faraónicas como a geo-engenharia ou os sorvedouros de carbono não devem servir como justificativo para não se tocar no modelo de desenvolvimento actual. Dificilmente o capitalismo desregulado será compatível com um modelo de desenvolvimento sustentável assente na prosperidade partilhada. É esta a ferida que importa tocar e é este o debate que deve assumir a ordem do dia. À era do capitalismo iniciada pela revolução industrial deve suceder uma nova era, pós-capitalista, com visão de longo prazo e não imediatista. A “desglobalização”, na qual as populações consigam manter a qualidade de vida e na qual os que actualmente são mais afectados passem a ter direito a melhores condições, tem que ser uma discussão em cima da mesa. Trata-se, no fundo, de um regresso ao consumo local e ao circuito curto, dando as necessárias garantias sociais aos trabalhadores e garantindo a protecção ambiental e ecológica. Os Estados devem apoiar o sector cooperativo como um actor preponderante nesta nova era onde todos consigam ter padrões elevados de qualidade de vida, consumindo menos e melhor.

Uma discussão deste cariz exige acção política coordenada entre os diferentes sectores da sociedade. Partidos políticos, ONGs, associações de todo o género e os cidadãos em geral devem ser capazes de se juntar tantas vezes quantas for necessário e discutir que tipo de sociedade desejam para o futuro. Uma coisa é certa, se não alterarmos o rumo que levamos, continuaremos a ter novos picos de temperatura a cada novo ano.

A Europa a salvar-se de si mesma

O ano de 2015 ficará marcado pelos enormes desafios que os países europeus, bem como a União Europeia como um todo, enfrentaram e, sobretudo, pelo modo como lhes responderam. Da humilhação ao governo grego pela sua luta contra uma política de austeridade cega ao mesmo tempo que se fechavam os olhos aos abusos autoritários na Hungria à crise dos refugiados, passando pela resposta ao terrorismo e ao conflito na Ucrânia, foram muitos os momentos em que os países europeus foram postos à prova e falharam. Falharam em primeiro lugar a título individual, não tendo conseguido apresentar soluções para inverter um ciclo de empobrecimento – social, económico e por vezes até democrático – e, em segundo, a título colectivo. Os problemas estruturais da UE não só se mantiverem como se agudizaram, ficando patentes as falhas no desenho do projecto europeu e da União Económica e Monetária, a díspar distribuição do poder de decisão entre os diferentes Estados-Membros, o poder de um Eurogrupo sobre o qual não existe qualquer controlo democrático e a falta de capacidade de falar a uma só voz nas questões de política externa.

O projecto europeu encontra-se numa fase decisiva. Após um ano desafiador, 2016 poderá ser o ano de todas as decisões. Ou os países europeus se comprometem a aprofundar o projecto europeu, tornando-o naquilo que deve ser, uma europa dos povos e não dos mercados, ou o espírito nacionalista anti-UE continuará a crescer nos quatro cantos do continente, com consequências imprevisíveis. É com o objectivo de democratizar a Europa que surge o DiEM25  (Movimento Democracia na Europa 2025), cujo rosto mais conhecido é o do anterior ministro grego Yannis Varoufakis e que será apresentado a 9 de Fevereiro, em Berlim. No manifesto provisório recusa-se a existência de apenas “duas falsas escolhas”: o casulo do Estado-nação e a subserviência a “Bruxelas”, defendendo-se uma terceira alternativa. Este texto serve também como um guia prático, indicando medidas que podem ser tomadas em quatro horizontes temporais diferentes começando desde já e culminando em 2025 e que terão como resultado uma Europa mais democrática.

O aparecimento deste movimento pan-europeu pode revelar-se de grande importância para o futuro da UE. Para ser bem-sucedido, precisará em primeiro lugar de nascer e crescer de forma independente. Se ficar exclusivamente associado a um indivíduo e for visto como um projecto unipessoal, as possibilidades de fracasso aumentam de forma exponencial. É necessário que os partidos políticos, as organizações de sociedade civil e todos aqueles cidadãos europeus que acreditam numa Europa mais solidária e mais justa assumam o seu compromisso e que lutem por esse objectivo.  Para os partidos políticos de esquerda, um movimeno pan-europeu nos moldes do DiEM25 é uma oportunidade para recuperaram o seu carácter internacionalista e tentarem de forma mais eficaz e coerente a prossecução dos seus objectivos comuns.

É preciso recuperar o espírito europeu e para tal é fundamental  que a União Europeia seja mais democrática. Não existirão muitas mais hipóteses de corrigir o rumo desastrado que a Europa tem seguido. O tempo é de crise e a mensagem é clara: é preciso que a Europa se salve de si mesma.

Segurança e liberdade

Quando se assinala 1 ano desde o ataque ao Charlie Hebdo e ainda na ressaca dos atentados de dia 13 de novembro em Paris, as questões de segurança e liberdade estão no topo da agenda europeia. O equilíbrio entre estes dois elementos é e será sempre muito delicado e não são raros os casos em que uma sociedade assustada admite (ou aceita tacitamente) perder alguma liberdade em troca de mais segurança. A disponibilidade dos cidadãos em aceitar medidas restritivas à sua liberdade é tão maior quanto maior e mais próximo tiver sido o evento extremo causador do choque. Esta estratégia, que pode ser equiparada ao jargão militar shock and awe, permite que líderes democráticos façam aprovar leis que, de outro modo, não conseguiriam.

Para além dos dois ataques terroristas em Paris, 2015 ficará também marcado pelo enorme fluxo de refugiados vindos sobretudo de uma Síria dilacerada por anos de guerra civil. À inação dos líderes da Europa central (honrosa exceção feita a Angela Merkel) junta-se o populismo de alguns líderes da Europa de Leste. Num continente onde há pouco mais de 20 anos se derrubavam muros limitadores da liberdade, voltam agora a erguer-se novos muros, igualmente vergonhosos e igualmente limitadores da liberdade. Fala-se em voz alta em “proteger uma Europa cristã” e em evitar uma “invasão”. Pede-se o final do espaço Schengen apontado pelos nacionalistas de diversas origens como o pecado capital europeu e principal responsável pelos ataques terroristas em solo europeu. O facto de a grande maioria dos terroristas conhecidos ter nascido – e, mais importante, ter sido criada – nesses mesmos países parece não ter qualquer importância nesta discussão.

Em França, onde as questões relacionadas com a segurança interna estão na ordem do dia, o debate tem passado pelo modo como se pode repreender aqueles que cometem atos terroristas. Pouco se discutem estratégias de prevenção a curto, médio e longo prazo que embora possam ter um efeito menos positivo junto da opinião pública, serão certamente mais eficazes. Nesta linha, logo no dia 16 de novembro, o presidente da República francesa anuncia no Congresso que irá propor uma revisão constitucional de modo a que os cidadãos bi-nacionais possam perder a nacionalidade francesa em caso de condenação por terrorismo, havendo também quem defenda que essa punição deva ser alargada a cidadãos exclusivamente franceses. Se a aprovação do estado de emergência durante 3 meses se fez quase sem votos contra, esta nova proposta, certamente cara aos setores da direita radical, está a levantar mais questões entre os socialistas. Apesar disso, François Hollande parece decidido em avançar com a proposta.

O medo é um terreno fértil para a extrema-direita.  A ameaça do racismo, da xenofobia e do controlo das liberdades, direitos e garantias dos cidadãos é real. Viktor Órban na Hungria, Robert Fico na Eslováquia e o novo governo polaco são a prova de como o populismo nacionalista continua bem vivo. Em França é a Frente Nacional de Marine Le Pen que melhor representa essa ideologia. A esquerda, que deveria ser capaz de apresentar alternativas de modo a combater o nacionalismo, é por vezes um aliado útil da extrema-direita, chegando até, com fins eleitoralistas, a ser a responsável por medidas dignas de qualquer partido ultra-nacionalista, como se viu em França em relação à lei da retirada da nacionalidade aos cidadãos bi-nacionais. Neste caso, Hollande parece esquecer-se um princípio básico: os cidadãos preferirão sempre o original à cópia.

Da necessidade e da violência

No seu ensaio L’été, Albert Camus, após relatar um combate de boxe, refere que ali a simplificação é fácil: o bom e o mau, vencedor e vencido. Continuando, refere que em Coríntia, na Grécia Antiga, o templo da necessidade era vizinho do templo da violência. Na eleição para presidente da República do próximo dia 24 também haverá apenas um vencedor. Mas serão muitos os vencidos. Se as sondagens que têm vindo a público se confirmarem, Marcelo Rebelo de Sousa, o político-professor-comentador, poderá ser eleito logo à primeira volta. Os derrotados não serão apenas os seus nove adversários mas também todos os que se empenharam e empenham no apoio a um governo apoiado por toda a esquerda parlamentar. Forçar uma segunda volta e tentar eleger um presidente apoiado pela esquerda é uma verdadeira necessidade. Chegou pois o momento de recorrer à “violência”.

Uma nota prévia: quando neste texto me refiro a violência, não o faço, logicamente, no sentido de agressão, mas sim no sentido da veemência argumentativa. Marcelo Rebelo de Sousa (MRS), contrariamente aos restantes candidatos a PR, beneficiou de um palco privilegiado, tendo tido assento semanal como comentador televisivo durante quinze anos. Deste modo, não é de estranhar o facto de abdicar de outdoors e, no fundo, de abdicar de fazer campanha. Confiante de que a sua popularidade bastará para ganhar a eleição – e não se inibindo de afirmar que será PR dentro de poucas semanas – MRS, no seu habitual estilo bonacheirão, pouco mais tem feito que distribuir alguns sorrisos e ir aparecendo. A comunicação social, que poderia ter um papel importante na promoção das ideias dos vários candidatos, parece já ter escolhido quem será o futuro PR, não se coibindo de apoiar, por vezes de forma bastante clara, o candidato MRS.

Restam menos de três semanas para as eleições presidenciais. Após dez anos de Cavaco Silva como presidente, tornou-se claro o papel e a importância que um PR pode ter. Esta não é apenas mais uma eleição, por mais que se tente passar essa imagem. É preciso que antes de eleger um Presidente da República se perceba claramente o que este pensa, de modo a antecipar como agirá assim que chegar a Belém. E é esta a violência necessária. É fundamental que a campanha eleitoral exista de facto. Se a comunicação social tenta fazer desta campanha um passeio para MRS, compete aos restantes candidatos obrigar Marcelo a dizer o que pensa. Marisa Matias, no debate que recentemente teve com MRS, foi a primeira a encostar o candidato às cordas, forçando-o a explicar os seus comentários em relação à despenalização da IVG e em relação ao BES.

Portugal é hoje um país socialmente diferente. Depois das eleições legislativas do passado dia 4 de Outubro, que deram uma clara maioria às forças de esquerda, a eleição do PR deveria ser a continuação da expressão dessa alteração. MRS sabe-o muito bem e como tal expõe-se o mínimo até dia 24, onde aposta tudo numa vitória à primeira volta. Sampaio da Nóvoa é o candidato com mais hipóteses de passar a uma eventual segunda volta e é sobretudo o que mais facilmente poderá agregar o voto de toda a esquerda. A sua derradeira oportunidade será no debate com Marcelo Rebelo de Sousa onde terá que conseguir mostrar por que é não apenas o melhor candidato mas sobretudo o melhor Presidente que Portugal pode ter neste momento. O combate pode parecer ganho mas, tal como no boxe, só acaba quando o gongo sonar. E por vezes pode-se até cair ao tapete várias vezes e ainda assim ser-se vencedor por poucos pontos.

Que jornalismo?

Uma das notícias que marca esta semana é o despedimento de dois terços dos trabalhadores dos jornais “Sol” e “i”, consequência da decisão do grupo “Newshold” de deixar de investir como accionista dos jornais. Com a ameaça constante do desemprego e a precarização do seu trabalho, não são apenas os jornalistas que são vítimas, é o próprio jornalismo isento, plural e de qualidade que está em risco. No topo da lista dos jornalistas mais ameaçados aparecem, muito provavelmente, os que trabalham na imprensa escrita “tradicional” – jornais e revistas. À diminuição das receitas com publicidade e redução dos lucros com as vendas de jornais, respondeu-se com a precarização e a compra de vários títulos e de vários formatos por grandes grupos financeiros. Torna-se portanto premente pensar num modelo de jornalismo para os dias de hoje, o mais plural possível e que proteja os jornalistas, dando-lhes as condições necessárias para a execução correcta da sua profissão.

A falta de pluralidade na comunicação social portuguesa não será uma surpresa para ninguém. Aos vários títulos já existentes, situados entre a imparcialidade e uma posição mais conservadora, juntou-se há não muito tempo o “Observador”, jornal em linha e abertamente de direita. Não foi portanto de admirar a cobertura enviesada dada às eleições legislativas do passado dia 4 de Outubro. Há, felizmente, excepções, como o mensal “Le Monde Diplomatique” que, na sua versão original, não se tem cansando de denunciar o impacto que a posse de vários jornais – incluindo alguns carismáticos de esquerda como o “Libération” – por parte de grandes grupos económicos tem na discussão e apresentação de ideias plurais. O editorial da edição do “Diplo” do passado mês de Outubro terminava dizendo que “num clima ideológico tão pesado como o actual, um jornal independente não é demais. (…) Encoraja as resistências, quando tantos outros se dedicam a esmagá-las.

É precisamente a falta de independência – e a falta de controlo por parte dos órgãos reguladores, diga-se – que permite que se tenha chegado a um ponto tão baixo do jornalismo. A pressão sobre os trabalhadores é imensa e a capacidade de resposta, limitada. Caso contrário, como entender a publicação do vídeo da sessão de despedimento dos trabalhadores do “Sol” e do “i”, numa demonstração de abuso e desprezo por parte do administrador, ele próprio jornalista.

Os desafios que se colocam ao jornalismo e aos jornalistas estão longe de ser um exclusivo português. Estive ontem numa sessão de apresentação de uma nova revista trimestral belga, de investigação e pesquisa jornalística e quando questionados sobre o porquê de terem avançado para a criação de uma revista e de o terem feito através de uma cooperativa, a resposta foi simples e clara: somos jornalistas e grafistas e estávamos fartos de ser explorados e não ter independência. Assim, as peças publicadas na revista são pagas entre 25 e 100% acima do preço recomendado pela associação de jornalistas profissionais belga.

A informação de qualidade e plural tem um preço. A discussão sobre como o pagar é essencial. Se os grandes grupos financeiros facilmente podem comprar títulos de imprensa, dando-lhes um teor cada vez mais conservador e precarizando a vida dos seus trabalhadores, as alternativas tardam em surgir. Até que ponto deve o Estado agir de modo a garantir essa pluralidade? Poderão as cooperativas garantir a necessária segurança laboral e a qualidade da informação? Estarão os portugueses disponíveis a bater-se de forma séria por um melhor jornalismo? E estarão dispostos a pagar por isso? São mais perguntas que respostas mas quanto mais tardarmos a discuti-las, mais estaremos a permitir a perpetuação dos abusos.

COP21: Combater ou perecer

Entre os dias 30 de novembro e 11 de dezembro, todos os caminhos irão dar a Paris. A capital francesa acolherá a vigésima primeira conferência das partes (COP21), ao abrigo da Conferência Quadro das Nações Unidas para as Alterações Climáticas (CQNUAC). Este evento reunirá mais de uma centena de chefes de Estado e de governo, com o objetivo de acordar medidas efetivas de combate às alterações climáticas. Após uma série de falhanços em cimeiras anteriores, esta é uma das últimas oportunidades para se tomarem decisões a nível global que possam realmente evitar processos irreversíveis, com consequências desconhecidas e incontroláveis. O ponto de não retorno tem sido associado ao aumento da temperatura média global em 2ºC em comparação com o valor pré-industrial que, sendo um valor simbólico e fácil de memorizar, é pouco operacional. Se é verdade que a cimeira tem mais de 10 dias de discussão entre as partes, é também verdade que grande parte das discussões e decisões já estarão concluídas nessa data. Vários sinais têm vindo a ser dados e sobre eles podemos fazer algumas análises.

Assinado na COP3, em 1997, e efetivo entre 2008 e 2012, o Protocolo de Quioto foi o primeiro a nível mundial a definir objetivos de redução de emissões de gases de efeito de estufa (GEE) de forma vinculativa. Sendo um passo na direção certa, este acordo está longe de ser suficiente, desde logo pelo facto de os Estados Unidos, um dos países com valores mais elevados de GEE, não ter ratificado o documento. Outro aspeto negativo que mancha o Protocolo de Quioto são as fraudes associadas aos mecanismos de compra e venda de créditos de emissões criados pelo mesmo e o facto de não haver qualquer sanção aplicada aos países que não cumpriram com as suas metas. Dadas as suas limitações, a definição de um novo mecanismo ou a extensão de Quioto têm, sem sucesso, sido tentadas. São de destacar os falhanços negociais em Copenhaga, na COP15 e em Doha, três anos mais tarde. Assim, a COP21 ganha uma dimensão especial sendo encarada como um momento decisivo. As expectativas são altas, mas a realidade pode ficar aquém do necessário.

Como referido, o aumento da temperatura média global acima dos 2ºC em comparação com os níveis pré-industriais terá efeitos nefastos para o planeta. Exceção feita a alguns fanáticos negacionistas do papel das emissões de origem antropogénica no aumento da temperatura global, este é um dado unânime. Apesar disso, caso não sejam tomadas medidas, poderemos chegar ao final do século com um aumento da temperatura média global acima dos 5ºC, o que teria consequências inimagináveis. Assim, mais do que acordos baseados na boa-vontade dos países e em reduções voluntárias, são necessárias medidas drásticas que limitem as emissões de gases de efeito de estufa. Esta limitação deve ser vinculativa e ter como teto valores cientificamente estudados e aceites como máximos toleráveis.

François Hollande está extremamente empenhado em conseguir um acordo minimamente aceitável em Paris. Com a popularidade em baixo e tentando recuperar o papel de ator global para o seu país, o presidente francês tem feito um intenso trabalho diplomático junto de vários homólogos. Em paralelo, algumas mudanças governamentais recentes e mudanças comportamentais em grandes países podem ajudar à obtenção de um acordo relativamente sólido. O Canadá, que nos últimos anos tem tido uma posição extremamente cética em relação ao combate às alterações climáticas, viu o seu novo governo, saído das eleições de outubro deste ano, juntar ao título de ministério do ambiente a pasta das alterações climáticas. Mais do que uma mudança cosmética, é um sinal para o futuro, como deixou claro o novo primeiro-ministro do país ao afirmar que “o Canadá será [em relação às alterações climáticas] um ator forte e positivo no palco internacional, incluindo Paris e a COP21. É por essa razão que temos uma ministra tão poderosa, não apenas em relação ao ambiente mas também em relação às alterações climáticas e que estará no centro das discussões”. Também na Austrália Tony Abbott, que fez da oposição às medidas de combate às alterações climáticas uma das suas bandeiras, deixou o cargo de primeiro-ministro no passado mês de setembro. No que pode ser visto como um encontro histórico, Barack Obama e Xi Jinping, líderes dos dois países com os valores mais elevados de emissões de GEE, declararam no final de 2014 o seu apoio a um acordo a ser obtido na COP21.

Em preparação para a COP21, vários países responsáveis pela maioria das emissões a nível mundial já apresentaram os seus objetivos de redução de emissões: redução de 40% até 2030 em comparação com os níveis de 1990 na UE; redução entre 26 e 28% até 2025 em comparação com os níveis de 2005 nos EUA; atingir o pico de emissões em 2030, na China. Sendo expectável que estes valores venham a ser a base do acordo de Paris, torna-se claro que, mesmo que cumprido, não conseguirá evitar um aumento da temperatura média global abaixo dos 2ºC. Cientes desse facto e de modo a pressionar os líderes dos diferentes Estados, a sociedade civil preparou-se para sair em força às ruas de Paris no dia anterior ao início da conferência. No entanto, na sequência dos ataques terroristas de dia 13 de novembro, as marchas pelo clima em Paris foram proibidas, sendo expectável que se realizam noutras cidades, um pouco por todo o mundo.

Não bastam portanto apenas boas intenções. Somente em 2009, no auge da atual crise financeira, o total global das emissões de CO2, um dos principais GEE, desceu em relação ao ano anterior. Torna-se assim necessária uma verdadeira alteração de paradigma a vários níveis. Desde logo, a nível energético, é necessária uma transição dos combustíveis fósseis para fontes renováveis de energia. O recurso a novas formas de extração de gás natural – com especial destaque para a fratura hidráulica ou fracking – tem sido apresentada com uma forma de transição energética. No entanto, este processo de extração extremamente inquinador e custoso tem feito com que o investimento que poderia ser feito nas renováveis seja desviado para este combustível fóssil, apresentado como mais “verde” que o petróleo. A prioridade deve ser dada a fontes renováveis de energia e à melhoria da eficiência energética, não devendo ser necessário recorrer a fontes energéticas de transição altamente poluentes.

Outro elemento essencial no combate às alterações climáticas passa por rever o nosso modelo económico, assente na globalização de um capitalismo agressivo e no livre-comércio sem qualquer barreira. Naomi Klein, no seu livro This changes everything, publicado em setembro de 2014, faz uma análise meticulosa e é clara ao indicar a impossível relação entre esse modelo e a sustentabilidade do planeta. As consequências estão já à vista através de fenómenos extremos como furacões e longos períodos de cheias e secas. O ponto em comum de todos estes fenómenos é o facto de as principais vítimas serem aqueles que menos contribuíram para as alterações climáticas, nomeadamente os habitantes dos países mais pobres. Nos países do Norte global os efeitos nefastos far-se-ão também sentir mas serão, uma vez mais, as populações mais pobres a sofrer as principais consequências. De modo a haver uma aposta na transição energética e no apoio aos países mais suscetíveis de serem vítimas das consequências das alterações climáticas, é necessário dinheiro. Muito dinheiro. A questão de como financiar um fundo verde será certamente das mais discutidas em Paris. Em Copenhaga, em 2009, os países ricos acordaram numa assistência financeira aos países mais pobres no total de 100 mil milhões de dólares anuais a partir de 2020. No entanto, a 5 anos do prazo, a soma disponível está ainda muito longe do objetivo.

A sigla COP21 significa a 21ª Conferência das Partes (Conference of the Parties, no original em inglês) mas poderia perfeitamente ter um outro significado: “Alterações climáticas no séc. XXI – Combater Ou Perecer”. É esta a dimensão do desafio que atravessamos e não teremos muitas outras oportunidades para mudar de rumo. Esperar que a evolução tecnológica por si só nos possa salvar é um risco que não nos podemos permitir correr. Os líderes mundiais terão que conseguir estar à altura deste desafio. Conseguirão?

Não ceder ao medo (nem ao “securitarismo”)

A atualidade internacional continua a ser marcada pelos ataques terroristas que no passado dia 13 de novembro mataram 130 pessoas em Paris. Misturando terrorismo, medo, religião, refugiados e política, os dez dias passados após os ataques têm revelado posições extremadas, muitas delas sem nexo e algumas até vindas da esquerda, numa tentativa de utilizar o medo gerado junto dos cidadãos com fins políticos. Seja na Europa, onde o inenarrável primeiro-ministro húngaro afirmou que todos os terroristas são emigrantes, seja nos Estados Unidos, onde o candidato às primárias pelos Republicanos e conhecido pelas suas posições polémicas Donald Trump defende a tortura e o recenseamento de todos os muçulmanos no país, não têm faltado exemplos desses exageros.

O momento é delicado e a luta contra o terrorismo não será ganha de um dia para o outro. Não será tampouco ganha se o medo do terror for substituído pelo medo de um Estado autoritário e securitário. É preciso que, na difícil relação entre segurança e liberdade, se consiga encontrar o ponto certo de equilíbrio e é portanto essencial que os atores políticos saibam manter o sangue frio. Se é, em certa medida, compreensível que a maioria dos cidadãos franceses apoiem a extensão das medidas de segurança em França, torna-se mais complicado explicar o facto de apenas seis deputados da Assembleia Nacional francesa terem votado contra a prolongação por três meses do estado de urgência, naquilo a que Noël Mamère chama de “recuo histórico da esquerda”. As propostas de François Hollande para facilitar a retirada da nacionalidade francesa a cidadãos bi-nacionais parecem não ter causado grande choque no seu partido. A poucas semanas das eleições regionais no país, o presidente francês parece tentar não perder votos para a Frente Nacional de Marine Le Pen que, por sua vez, não tem qualquer problema em afirmar que estas são apenas “medidazinhas”, apelando ao encerramento de fronteiras, pese embora todos os terroristas identificados até ao momento serem europeus.

Na Bélgica, país que tem, per capita, o maior número de cidadãos a lutar nas fileiras do daesh, a segurança é quase tema único. Há três dias que a região de Bruxelas se encontra no nível máximo de alerta, o que implica o encerramento do metro e um reforço dos militares nas ruas – de notar que desde os ataques ao Charlie Hebdo os militares já estavam em alguns pontos sensíveis da cidade – bem como o encerramento de escolas, cinemas e salas de concertos. Jan Jambon, vice-Primeiro-Ministro do país que é famoso por várias declarações polémicas, como por exemplo desculpando os colaboracionistas durante a ocupação nazi, afirmou que seria pessoalmente responsável pela limpeza de Molenbeek (comuna de onde saíram alguns dos terroristas) e que gostaria de ver todas as casas daquela comunidade a ser controladas.

Não podemos ceder ao medo. Nós, cidadãos da liberdade e da democracia, temos a obrigação de não ceder àqueles que nos querem obrigar a ter medo de viver. E somos também nós, cidadãos cosmopolitas de uma Europa sem fronteiras que se tem vindo a construir, que não podemos ceder ao Estado securitário. É uma luta desigual mas é preciso que os que acreditam na segurança tanto como na liberdade se façam ouvir. Às pulsões extremistas, constantemente alimentadas por uma comunicação social sedenta de violência, temos que responder com calma e ponderação. Sem um debate sério e moderado sobre a segurança que necessitamos e sobre como combater efetivamente o terrorismo, seremos certamente consumidos pelo medo irracional.

39. LOTFree
Ilustração de Eduardo Viana

A luta de uma geração

Quando me comecei a interessar por política, algures no início da minha adolescência, lia com admiração imensa os relatos de várias lutas passadas que tinham marcado várias gerações. Naquela altura era a causa timorense que unia os portugueses e ficará para sempre na minha memória a manifestação organizada em frente à embaixada indonésia em Madrid, em setembro de 1999, que juntou pessoas de todo o país, dos mais novos, como eu, aos mais velhos. Em casa ia vasculhando livros dos meus pais, retratos da sua juventude. De “As portas que Abril abriu” aos discursos de Samora Machel reunidos em “A luta continua”, tentava absorver ao máximo todas as palavras, incluindo as que não entendia e que à época eram bastantes. Quanto mais lutas conhecia, mais invejava a geração dos meus pais pelo Maio de 68, pelas lutas anticolonialistas, pelo 25 de Abril.

Apaixonado por todas essas lutas, ficava triste por achar que nunca a minha geração teria a sua Sierra Maestra, as suas barricadas ou, num registo bem mais pacífico e mais próximo, as suas grandes lutas estudantis que alguns anos antes haviam levado tantos jovens às ruas. De certo modo, invejava essa geração rasca, pela sua coragem e atrevimento desafiador, esperando mobilizações semelhantes para a minha própria geração. As batalhas contra a invasão do Iraque apanharam-me a meio da minha adolescência e ainda longe dos locais das manifestações e quando a nova geração à rasca saiu à rua, já eu tinha saído do país. Durante muito tempo achei que a minha geração estava condenada à não-história, a ser apenas uma geração de transição. Longe estava eu de imaginar que afinal a realidade seria bem diferente.

Aqueles que como eu nasceram e cresceram numa comunidade europeia sem fronteiras não conseguem imaginar uma Europa de muros e de portas fechadas. As mulheres e homens das gerações Erasmus repugnam a ideia de um país orgulhosamente só. Pelo contrário, como nunca antes, os portugueses olham com atenção e interesse para o que se passa nos restantes países da União. Após os ataques em Paris, muitos de nós pensaram nos seus amigos que aí residem, portugueses ou não. Do mesmo modo, quando algo acontece em qualquer outro país europeu, é bastante comum alguém ter amigos ou conhecidos nesse país. E este é um sentimento recíproco pois nas últimas semanas foram várias as mensagens que recebi a pedir uma explicação para o que se estava a passar em Portugal após as eleições.

A minha geração, a que o Libé chama hoje na sua capa de geração Bataclan, festiva, aberta e cosmopolita, tem pela frente um desafio imenso. De um lado, aqueles que pelo medo e pelo terror nos querem forçar a alterar o nosso modo de vida. Do outro, os governos que pela força e pelo poder nos querem isolar dos restantes países, atacando assim a nossa liberdade. É contra estes dois extremos que temos que agir antes que seja tarde demais. Esta é uma luta de todas as gerações mas a minha tem uma obrigação especial pois este foi o país e a Europa que os nossos pais conseguiram construir e compete-nos conseguir a sua manutenção e melhoria. Será uma luta difícil de ganhar mas para quem, como eu, achou que a história não precisaria desta geração, este é desafio pelo qual esperávamos. Pela defesa da democracia e da liberdade todas as vozes contam. Que sejamos muitos e que saibamos estar à altura das nossas responsabilidades.

Turquia – tão perto e tão longe

Vivem-se tempos conturbados na Turquia. Desde o surpreendente resultado das eleições de junho, que não deram ao AKP a maioria dos assentos parlamentares, o governo turco acelerou a sua deriva autoritária. Não satisfeito com o resultado e vendo-se na impossibilidade de formar governo, o partido conservador de Recep Erdogan optou por reacender conflitos internos, esperando obter melhores resultados nas eleições antecipadas que se realizaram no passado dia 1 de novembro. A estratégia do medo funcionou mas não tão bem como o AKP teria desejado: recuperou a maioria dos lugares no parlamento, o que lhe permitirá governar o país sozinho, mas não conseguiu impedir a entrada do HDP (partido pró-curdo e pró-minorias) que, pela segunda vez e embora tendo perdido bastantes votos, conseguiu superar o anti-democrático limiar de 10% dos votos.

Com a nova disposição parlamentar não será possível aprovar a mudança constitucional desejada por Erdogan, de modo a transformar o país num regime presidencial; mesmo a convocação de um referendo onde tal mudança possa ser aprovada está dependente do voto de deputados que não pertençam ao AKP. O aumento do autoritarismo no país tem vindo a aumentar gradualmente nos últimos anos, com vários momentos-chave, como a repressão aos manifestantes na praça Gezi em 2013. Apesar disso, Erdogan conseguiu há dois anos um cessar-fogo com o PKK curdo, colocando parênteses num conflito de décadas. Infelizmente, a ação de força após as eleições de junho reacendeu o conflito e o cessar-fogo foi já anulado, o que levará certamente ao reacender do conflito, com todas as consequências que isso implica.

A Turquia, Estado-Membro da OTAN e há vários anos candidata à adesão à UE, é um parceiro fundamental dos países europeus. Apesar disso, os países europeus não podem fechar os olhos ao que se está a passar no país, seja por razões económicas, seja por razões políticas, como em relação às questões ligadas ao acolhimento dos refugiados de guerra. A atuação dos agentes políticos europeus tem, no entanto, sido em sentido contrário. Angela Merkel, desde sempre cética em relação à adesão da Turquia à UE, fez uma visita de Estado ao país pouco antes das eleições de novembro, onde mostrou vontade de acelerar o processo de adesão, no que pode ser entendido como um apoio tácito a Erdogan e ao AKP. Mais, o relatório sobre a evolução da candidatura do país à UE – extremamente crítico em relação à limitação das liberdades individuais e à liberdade de imprensa – que deveria ter sido publicado antes das eleições, foi apenas conhecido alguns dias depois.

Uma Turquia democrática e plural tem que ter lugar na União Europeia. Tivesse esse lugar sido concedido há mais tempo e provavelmente não veríamos agora estações de televisão e jornais a ser encerrados à força nem jornalistas a ser detidos. Tivesse a União Europeia sido mais acolhedora e talvez não tivéssemos visto imagens de corpos de curdos a ser arrastados por camiões blindados do exército nem cidades em estado de sítio, como Silvan no dia de hoje, com recolher obrigatório de 24 horas. A Turquia, apoiada no seu crescimento económico e pelo papel que tem desempenhado no acolhimento de refugiados, continuará o seu jogo diplomático. Antalya será entre os dias 15 e 18 deste mês palco da conferência do G20, onde dificilmente serão abordados os problemas de democracia no país. A UE, que tanto se tem afastado dos seus princípios fundadores, não pode abdicar do seu papel na defesa da democracia e dos direitos e garantias individuais. Assim, deve ter uma posição clara em relação ao que se passa atualmente na Turquia, mostrando-se honestamente aberta à sua adesão. Caso contrário, o país continuará a estar tão perto mas ao mesmo tempo tão longe.