LGBTQAfobia na saúde

Hoje celebrou-se o Dia Internacional Contra a Homofobia, Lesbofobia e Transfobia. Bem, alguns celebraram. Outros ainda não conseguem celebrar estas coisas. Alguns acham que é inútil, outros que é errado. Alguns acham que o que é errada é a própria questão da orientação sexual. Uns porque acham que tudo o que não é heterossexual é anomalia e doença, outros porque ainda acham que é uma opção e que portanto só por arrogância ou perversão alguém pode escolher ser assim ou assado e com isso magoar-se e magoar os que esperavam de si algo “normal”.

Portanto recomeço, hoje alguns de nós celebrámos o dia em que se pretende mostrar uma união entre os povos na luta contra a discriminação na orientação sexual e identidade de género. Como trabalho em saúde, contexto no qual esta questão tem particularidades relevantes, e depois de chamado à atenção pelo texto da Agência Europeia dos Direitos Fundamentais, ocorreu-me escrever sobre o assunto. Por um lado, porque no meio de tanta desatualização de que os médicos, enfermeiros, psicólogos e outros profissionais sofrem, parece que ainda há espaço para pessoas que vivem no medievalismo de considerar a homossexualidade doença. Por outro lado, porque a discriminação na saúde não só reflete como propaga um preconceito profundo e é um agente ativo do sofrimento de pessoas destes grupos.

Quanto ao primeiro ponto, não há muito a dizer. Já é mais que claro que as organizações responsáveis não consideram estas questões do domínio da patologia. Esse erro crasso e histórico já foi em grande parte revogado. Pelo menos nos papéis.

Quanto ao segundo, já não é tão simples. E infelizmente o segundo influencia o primeiro. Por um lado, as crenças do profissional de saúde, ainda que não devam, conseguem sempre influenciar a sua postura, a sua conversa, a sua interação. Por outro, podem fazê-lo muito mais resistente à mudança, por exemplo na questão de “acreditar” que a homossexualidade “afinal” não é doença. É ainda relevante pensar nos profissionais de saúde como líderes de opinião e conhecimento nas suas comunidades. Quando são eles a presumir certas normalidades, essa ideia é transmitida ou reforçada nos seus utentes/doentes. Para além disto, o comportamento discriminatório por parte do profissional tem o potencial de ter um impacto especial na vítima. É demasiadas vezes feita referência à discriminação nos cuidados de saúde como potencial confundidor nos diagnósticos, por exemplo pela presunção da presença ou ausência de determinados comportamentos sexuais. A história do VIH deixou-nos, naturalmente, traumatizados. Mas com este texto pretendo chamar à atenção a uma vertente talvez mais simples mas também muito mais frequente e generalizada. Como médico de família, a simples pergunta “ tens namorada?” – que é uma ponte fácil para abordar o tema da sexualidade na consulta com o adolescente – pode não só estragar a relação de confiança com o meu utente rapaz homossexual, como aumentar o seu sofrimento, um potencial sentimento de insegurança, de anomalia, de culpa, de incapacidade de aceitação, e diminuir consideravelmente a probabilidade de ele recorrer à minha consulta quando a questão for a sexualidade. E se eu, que me considero informado e preocupado com esta questão, me deixo por vezes cair nesta armadilha da educação heteronormativa, o que não será o habitual nas consultas e contactos com profissionais com mentes “menos abertas”? A resposta a esta pergunta já existe em vários inquéritos feitos a profissionais de saúde e a utentes. É péssimo.

Os profissionais de saúde são, assim, uma população em que é importante investir particularmente se queremos evitar sofrimento e acelerar a eliminação do preconceito na sociedade. O problema põe-se, então, no “como”. Como chegar a estas pessoas e mudar a sua postura? Não resultou ter a OMS e a UE a declarar que a homossexualidade não é doença, que os países deviam deixar de exigir diagnósticos de perturbações para oferecer cirurgias de reatribuição sexual ou reconhecer o género pretendido na identificação civil do indivíduo. Não chegaram os artigos científicos nem os programas na televisão. Não chegou o passar do tempo. Este é o ponto neste momento. E deve ser prioritário.

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Desrespeito pela democracia

Ao contrário do que defenderam os líderes dos partidos de esquerda representados na Assembleia da República na próxima legislatura, não acho que a indigitação de Passos Coelho seja uma “perda de tempo” e menos ainda um “golpe de estado”, como se ouve por aí dizer. O discurso de Cavaco Silva foi de uma falta de espirito democrático, de isenção ideológica, de lógica, que até se torna vergonhoso. Mas a sua opção por indigitar o líder da coligação que tem mais votos parece-me correcta. Desde que este vencedor, ainda que minoritário, esteja disponível e capaz para organizar um governo e um programa para apresentar ao parlamento, o presidente da república deve permitir-lho. Passada que está a bola, cabe agora à AR pronunciar-se perante as escolhas de PPC. É por isto mesmo que a indigitação de Passos Coelho não foi perda de tempo, e bem pelo contrário, permitiu a maturação do nosso sistema político, ao expor os deputados – e de acordo com os votos dos portugueses – a uma nova realidade, de uma maioria de votos e mandatos que não quer entendimentos com o vencedor das eleições. É esta mesma situação que torna o discurso do presidente ainda pior. Para além da ter excluído partidos políticos da nossa democracia de qualquer potencial participação governativa, desrespeitando a república a que preside, para além de ter justificado a indigitação de PPC com a potencial reação de mercados financeiros a uma alternativa (sem sequer nomear os partidos a que se refere), desrespeitando a escolha democrática dos eleitores, o ainda presidente tentou por fim influenciar os deputados num momento histórico e muito relevante da maturação do parlamento e, portanto, de toda a democracia portuguesa. Diz-se frequentemente que Cavaco Silva faz o que faz ou diz o que diz por ser muito institucionalista, mas parece não passar de mais uma desculpa para que os seus múltiplos percalços não obviem a sua obstinação autoritária e ideológica.
Mas a vergonha da intervenção do presidente da república foi apenas o primeiro mau momento desta fase. Seguiu-se hoje a apresentação dos membros do novo governo que Passos Coelho propõe. O que PPC e Paulo Portas nos apresentam é de uma indigência que quase alcança o quão fundo chegou o presidente. Mantendo-se o irrevogável Portas na sua inútil função, segue-se este desastre:

  • aumentam ministérios – indo contra as suas próprias ideias ao formar governo em 2011;
  • recuperam o ministério da cultura – que ainda há pouco era de tal forma um despesismo que lhe bastava uma ridícula secretaria de estado mal amanhada – juntando-o, talvez para poupar secretárias, à igualdade e à cidadania, promovendo para a sua tutela Teresa Morais, cujas opiniões sobre o casamento entre pessoas do mesmo sexo ou questões de identidade de género são sobejamente conhecidas e pouco igualitárias;
  • misturam duas maravilhosas referências ao caso do BES, por um lado promovendo Fernando Negrão a ministro da justiça – já que falhou a eleição para presidente da AR – depois do seu papel na comissão de inquérito, e por outro escolhendo para ministro da administração interna Calvão da Silva, o senhor que atestou a idoneidade de Ricardo Salgado perante o Banco de Portugal quando Carlos Costa se preparava para lha retirar;
  • promovem a ministro da saúde o secretário de estado Fernando Leal da Costa, figura cuja incompetência e inadequação ao cargo foi constantemente apontada pelos profissionais de saúde e cujo momento mais baixo, que não resisto a lembrar apesar de correr o risco de esquecer tantos outros, foi o seu comentário a uma reportagem da TVI que mostrou más condições e insuficiência do serviço em urgências após o pico da gripe: “o que nós vimos foram pessoas bem instaladas”.

Mais haveria para dizer, mas basta isto para ilustrar o desrespeito da liderança da coligação Portugal à Frente pelos portugueses. A justificação frequentemente repetida na comunicação social para este resultado é a da dificuldade em formar um governo que está morto à partida. Ora, se assim é, quanto mais não seja por uma questão de dignidade, cabe a Pedro Passos Coelho desistir e devolver a responsabilidade ao presidente da república. Apresentar esta formação, especialmente se for reconhecidamente por incapacidade de fazer um governo em condições, é inaceitável. Resta ter esperança de que este seja mesmo o governo mais curto da democracia portuguesa.

E PaF, fizeram-se médicos!

A comunicação social noticia hoje que o governo “promete dar, nas próximas semanas, médico de família a 450 mil portugueses”.

Passando ao lado da utilização tão interessante do verbo “dar”, esta notícia não passa de mais uma mentira num momento tão pouco relevante como a última semana de campanha eleitoral, senão vejamos:

– O governo não está a fazer uma contratação extraordinária, este momento é tão simplesmente a contratação dos médicos que acabaram a formação específica em Março-Abril de 2015;
– Houve 237 médicos que terminaram a formação em Medicina Geral e Familiar, mas não são 237 novos médicos de família para o SNS. Houve médicos a emigrar, médicos a sair para o privado e até médicos que não conseguiram colocação onde tentaram concorrer no concurso que agora termina;
– Os novos médicos não vão necessariamente ter listas de 1900 utentes, muito menos instantaneamente (e ainda bem, são demasiados utentes para se fazer um trabalho bem feito);
– Os números de utentes com médico de família estão sobrestimados, todos os utentes que eu estive a ver ao longo do último ano contam como “com médico de família” apesar do médico deles se ter reformado. Ora bem, ou eu conto como médico de família destes 1750 ou conto como médico dos próximos quando assinar contrato em Outubro. Não podemos é fazer contas como se eu me duplicasse. Ora como eu, só no norte, estão cerca de 100 médicos recém-especialistas. É fazer as contas.

Que se lixem as eleições, não era?

– Valia a pena, num bom trabalho jornalístico, lembrar que neste concurso, nos moldes em que foi feito, dos 100 médicos recém-especialistas a trabalhar temporariamente no norte, apenas 74 podem ficar por lá, não foram abertas mais vagas à revelia da vontade da ARS Norte, dos médicos e das necessidades locais. A vontade de desviar médicos à força para outras áreas com mais necessidade foi tal que o governo preferiu “arriscar” que emigrassem ou fossem para o privado;
– Juntando os dois últimos dados, percebe-se ainda mais uma coisa: ao mesmo tempo que se contratam mais médicos, o norte vai mesmo perder cobertura. É que nas contagens atuais, os recém-especialistas que ficaram a “tapar buracos” contam como médicos de família. Se só 74 dos 100 ficam no norte… é, mais uma vez, fazer as contas.

Crueldade institucional

Soube ontem que estaria para ser libertado o último dos “Três de Angola”, Albert Woodfox. O activista dos Panteras Negras – que lutavam pela melhoria das condições de vida dos prisioneiros na prisão de alta segurança no Luisiana, nos EUA – preso em 71 por assalto à mão armada, foi acusado pelo homicídio de um guarda prisional no contexto de um motim e esteve desde 72 – 43 anos – em solitária. Não escrevo este texto para analisar a probabilidade da sua culpa, ou sequer o sentido que faz um terceiro julgamento a que se arrisca, dado o Procurador-Geral ter intenção de voltar a levar o caso a julgamento, depois do juiz ter decretado a sua libertação imediata e aconselhado o Ministério Público a desistir (dada a impossibilidade de julgar o arguido com imparcialidade no Luisiana).
Escrevo este artigo para chamar à atenção para a crueldade com que esta pessoa foi tratada, independentemente da sua potencial culpa.
Por um lado, falamos de um indivíduo cujas duas condenações foram anuladas mas que, apesar disso, se manteve preso durante mais de 40 anos. A somar a isto, a sua libertação “imediata” acaba de ser adiada até sexta-feira e há a possibilidade de se manter preso sem culpa provada novamente, à espera do suposto terceiro julgamento. Ou seja, temos um suspeito que já cumpriu quatro décadas de prisão. Não sei qual seria a sua pena pelo crime por que foi de facto condenado – o assalto à mão armada – mas estou certo que nem de longe teria qualquer aproximação a isto.
Por outro lado, lembro que esta pessoa passou estes 43 anos em solitária. Que justificação poderá haver para tal coisa, que não a vingança das autoridades, seja pelo suposto homicídio seja pela exposição dos maus tratos aos prisioneiros? Têm medo que seja violento para outros presos? Não. Têm medo que fuja? Que organize motins? Eu diria que é para isso que há guardas prisionais. Então porque raio se sujeita um ser humano a uma situação de isolamento total, 23 a 24 horas por dia, num espaço de 1,82 metros por 2,70 metros (segundo outro dos Panteras, anteriormente libertado)?

Crueldade. Totalmente inaceitável, mas institucionalizada, ao ponto de isto poder ocorrer ao longo de décadas e de poder ser mantido mesmo após anulação de penas por tribunais de instâncias superiores. O tema das condições de vida dos presos ainda é demasiado tabu. Este caso ilustra como é tão importante que deixe de o ser, em todo o mundo.

(mais na notícia do Público, aqui)

A democracia e a comunicação social livre

Não é preciso referir a censura do Estado Novo, como a SIC fez – e muito bem – no Jornal da Noite de ontem.

Não é preciso lembrar as primeiras eleições livres em Portugal, como fez o Expresso no seu trabalho sobre o caminho para a Assembleia Constituinte. Não é preciso ir longe na breve história da nossa democracia em busca de momentos ilustrativos.
Basta estar atento agora.

Já várias vezes, na legislatura actual, o aparecimento de um documento na imprensa e consequentes reações fizeram partidos ou grupos parlamentares inverter sentido de marcha. Não é importante a análise caso a caso para este ponto. Basta esta constatação para demonstrar a importância de uma comunicação social livre.

Escrevo isto não só para mostrar repúdio pelo projeto – agora órfão – de criar uma comissão para aprovar previamente os planos de acompanhamento da campanha eleitoral dos meios de comunicação social. Escrevo também para lembrar (e para me lembrar) do valor da democracia e do trabalho que é preciso fazer para que ela seja real, para que se mantenha, para que se possa aprofundar.

A informação, a participação do cidadão, a responsabilização do representante ou governante são condições que definem uma verdadeira democracia.

Hoje é 25 de Abril. Celebremos os 41 anos. Celebremos os 40 anos. Mas este ano – como noutros – celebremos com a tristeza de constatar a fragilidade do que conquistámos e temos como definitivo. Que nos seja útil.

Viva a liberdade!

Cegueira seria uma boa desculpa

O governo tem olhado para o sistema nacional de saúde como uma despesa. Só assim, com uma visão deste nível de simplicidade, se pode compreender o que tem feito, desde a escolha da equipa governativa às suas últimas decisões e reações.

Escrevo este texto no esforço de evitar falar de cegueira enquanto na minha cabeça rola repetidamente a fita com o secretário de estado a reagir à última reportagem da TVI sobre os serviços de urgência do SNS. É difícil. Vamos mesmo ficar pela cegueira em vez de procurar alternativas e ponderar a hipótese de sermos governados por loucos ou por gente mal-intencionada.

Uma cegueira talvez nos permita perceber que um governo não veja que um serviço de saúde bem construído, robusto, eficaz e disponível para todos é uma condição para não sermos um país miserável e não um custo ou um desperdício.

Uma cegueira talvez nos permita entender que uma pessoa que fala em fazer melhor com menos quando fala de um serviço de saúde simplesmente não consiga ver o absurdo consequente às suas palavras. Menos dinheiro corresponde provavelmente a menos serviços (e de certeza a nenhum serviço novo, esquecendo definitivamente a busca pela equidade no acesso à saúde), a menos profissionais (sim, desses que em geral temos a menos no serviço público) e/ou a menos material (desse que é absolutamente essencial para a prática de um serviço de saúde). Desde o encerramento de serviços de atendimento permanente e de serviços de atendimento a situações de urgência ou a sua grande diminuição, sem qualquer compensação a nível de cuidados primários ou de capacidade de serviços de urgência, às limitações de contratação de profissionais de saúde mesmo quando são essenciais a um serviço, ou às múltiplas situações que a Ordem dos Médicos tem vindo a expor, o resultado está à vista de quem quer ver.

Uma cegueira talvez justifique que se tenha praticamente paralisado a reforma dos cuidados de saúde primários, deixando profissionais e populações numa situação de desigualdade absurda, deixando de investir nas USF modelo B e ignorando a necessidade de o melhorar e conseguir generalizar ou criar um modelo que mantenha os seus benefícios e seja aceite por todos.

Uma cegueira talvez explique porque foi tão difícil encontrar um caminho para a reforma hospitalar que tanto e há tanto se advoga.

Uma cegueira talvez cause a impossibilidade de perceber que não se podem ter serviços como estes a funcionar na dependência de empresas intermediárias, ignorando a necessidade de ter estabilidade, de construir equipas, de criar uma ligação entre os profissionais e os serviços, de permitir planos e margens de manobra.

Uma cegueira talvez explique porque se acha que se resolve a falta de médicos de família aumentando-lhes as listas, como se fez em 2012 num acordo que foi um perfeito exemplo de bullying e como se planeia fazer – ou se diz que se planeia, este governo diz muitas vezes coisas apenas para as retirar e no meio da confusão deixar passar medidas pela calada – com a recente proposta de permitir listas de 2500 utentes por médico de família, como se o tempo e a capacidade de trabalho de cada profissional fossem infinitas e apenas dependentes da vontade.

Uma cegueira talvez leve alguém a pensar que se pode contratar médicos estrangeiros oferecendo-lhes ordenados inferiores aos que se pagam já do outro lado da fronteira, na vizinha Espanha ou preencher as vagas do interior com subterfúgios na abertura de concursos e suplementos remuneratórios decrescentes (e só para médicos, que os restantes profissionais nem essa compensação merecem ou têm força para motivar).

Uma cegueira talvez faça o desaparecimento do ano comum do internato por decreto parecer lógico, sem que evidência de alteração da formação nas faculdades que possa suprir o que um ano de trabalho em vários serviços e situações oferecia a cada médico recém-formado.

Uma cegueira talvez esteja na origem da despreocupação com a mais que provável acumulação de médicos sem especialidade que se nada for feito começará a ser inevitável dentro de pouco tempo, ao mesmo tempo que se trata com displicência a emigração crescente dos profissionais de saúde – que se ao nível dos médicos é um problema recente mas crescente, ao nível da enfermagem é um problema enorme, crónico e absurdo.

Se não é cegueira, se Paulo Macedo, Leal da Costa e colegas não são cegos e não é portanto isso que explica que não percebam que tudo isto serviu apenas para prejudicar os profissionais e os utentes do SNS, então resta-me pensar que o seu objetivo nunca foi o de melhorar a saúde dos portugueses ou sequer de manter os bons serviços de que dispõem (dispunham?), mas o de melhorar as perspetivas futuras do negócio privado da saúde à sua custa ou, em alternativa, o de cortar gastos sem qualquer propósito que não o de cortar, em plena e absoluta irresponsabilidade.

Voltando ao princípio, a reação à reportagem da TVI continua na minha mente. A reportagem foi dramatizada, com uma edição e seleção que fez por exagerar o possível e pode até ter prejudicado a sua utilidade como informação, mas a verdade é que ilustra a realidade de uma questão a que o governo tem fugido constantemente. As urgências hospitalares do SNS não dão uma boa resposta às necessidades da população e isso não é causado pelo pico de gripe, pela semana mais fria ou pelas férias de Natal. O problema é constante, resulta da falta de atendimento pré-hospitalar e da falta de profissionais na urgência, mas também da falta de internamentos (sim, não são só camas, serviços de internamento implicam camas mas também uma miríade de profissionais e condições). Ter um responsável ao mais alto nível a olhar para estas imagens e fingir que está a ver a absoluta normalidade e até motivos para rejubilo ou elogio é ignóbil.

Se estivesse a falar há um ano atrás diria apenas que é tempo de parar de se falar em Paulo Macedo como o menos mau, que é tempo de exigirmos mais da nossa governação do que um Leal da Costa, que é tempo de por estes e os que os escolheram fora das suas funções governativas. Mas estou a falar em 2015, com Cavaco, ainda que em fim de linha, a manter a impávida presidência que pratica desde 2011 e se aproxima e os portugueses à espera das eleições legislativas. Por isso digo apenas que é tempo de sistematizar tudo o que foi feito e tudo o que não foi feito, mas também que é tempo de começar a discutir o que pode ser feito. Em relação à saúde, como em relação a outros pilares da sociedade, não podemos dar cheques em branco na hora do voto nem podemos assistir passivamente ao rasgar de compromissos eleitorais. Venham as eleições, é tempo de voltar a fazer por Portugal e, de preferência, de olhos bem abertos.

Colocação de médicos de família – ao serviço de números em vez de pessoas

Sem pré-aviso, o concurso para colocação dos recém-especialistas em Medicina Geral e Familiar (MGF) mudou. Para os médicos formados em Março de 2014, as coisas decorreram em geral como dantes (com algumas nuances recentes muito relevantes), mas para os médicos formados em Outubro, cujo concurso decorre (só) agora, tudo é diferente e pior e ultrapassa largamente a violação das expectativas de médicos e utentes.

Algum contexto é importante para se compreender esta questão.

Quando um médico interno termina a formação em MGF, não tem um concurso imediatamente a seguir para obter colocação. A ARS Norte tem colocado estes recém-especialistas a trabalhar nos locais em que por algum motivo há utentes a descoberto (médicos reformados ou utentes sem médico) enquanto aguardam pelo concurso para a sua colocação e início de carreira no SNS.

Por outro lado, as Unidades de Saúde Familiar (USF), uma das duas unidades funcionais onde se prestam cuidados de MGF, têm um grau de autonomia funcional que se relaciona com o seu conceito. São unidades onde os profissionais são beneficiados pelo cumprimento de indicadores de desempenho contratualizados anualmente e cujos resultados são avaliados globalmente, ou seja, toda a equipa ganha com os resultados que toda a equipa contribui para atingir. A remuneração dos médicos tem relação com o seu trabalho individual, mas a remuneração por indicador para os enfermeiros, secretários clínicos e para a unidade em si (que pode depois investir em material e melhoramentos) é totalmente dependente do trabalho em equipa que inclui todos os profissionais. Faz assim sentido que a equipa possa ser – conforme a lei a define – de constituição voluntária e com profissionais aceites pela equipa. As pessoas têm que trabalhar em sintonia, entender-se umas com as outras, ocupar as diferentes funções necessárias para a gestão da USF. Foi aqui dado apenas um exemplo, talvez o mais claro, da interdependência inerente ao trabalho numa USF.

Assim, aquando das colocações dos recém-especialistas, aqueles que já tinham convite para pertencer a uma USF, fosse na criação de uma nova unidade já aprovada, fosse para pertencer a uma já existente, eram colocados à margem da escolha de colocação seriada dos restantes concorrentes. Respeitava-se assim não só as determinações da constituição da equipa das USF, mas também o trabalho dos internos, não só aqueles que, tendo sido mobilizados para uma unidade com necessidade, deram provas do seu trabalho e foram convidados a integrar definitivamente a equipa, como os que fizeram formação numa unidade onde entretanto houve uma reforma, muitas vezes tendo o interno contribuído para a substituição temporária do profissional, a quem a equipa decide convidar para pertencer à unidade.

Os benefícios de uma colocação nestes termos são múltiplos. Começando pelos utentes – afinal, o centro do SNS – que podem assim ficar com um médico que em alguns casos já os conhece (há internos com vários meses de dedicação à lista de um médico reformado, seja no último ano de formação, seja no período entre o exame de especialidade e o concurso), já conhece a equipa e trabalha bem com ela (tanto que foi convidado), já conhece a comunidade envolvente, as suas características e recursos. Depois, ao nível da equipa, que se no caso das USF deve ser indiscutivelmente decisora da integração de um profissional, no caso de outras unidades ou serviços de formação médica também deve ter um papel. Um serviço que faz formação, caso tenha falta de um profissional, deveria sempre poder optar por manter um profissional que formou – é nesse serviço que estão as pessoas que melhor conhecem o seu trabalho, o seu perfil, os melhores avaliadores da sua adequação às necessidades. Por fim, para o próprio recém-especialista, que pode, se essa for também a sua decisão, manter-se no local que já conhece e com a equipa e os utentes que já conhece, evitando alterações importantes na sua vida pessoal que uma maior deslocação poderia implicar, o que por sua vez aumenta a estabilidade para os utentes que acabam de ter que trocar de médico de família (MF) ou que estão a ter um pela primeira vez, dada a probabilidade deste médico querer manter a sua actividade profissional naquele local – aos 30 anos (pelo menos), a probabilidade da pessoa já ter a sua vida pessoal e social ligada àquele local é elevada.

Esta forma de fazer as coisas tem também problemas que se devem obviar, como é o caso do aparente desvio à meritocracia. No entanto é enviesado centrar a avaliação do mérito somente na seriação após exame final de especialidade e entrevista na ARS. Não serão os convites para pertencer a uma equipa interdependente resultado de mérito? Não serão a dedicação a uma lista no ano final da formação ou no período entre o exame e o concurso merecedoras de consideração, especialmente quando resultam num convite para integrar a equipa? Numa época em que tanto se quer premiar o desempenho, é surpreendente que se ignore isto para se basear simplesmente numa seriação de base essencialmente teórica em parcos momentos de avaliação. É ainda de referir que a colocação para iniciar o internato de especialidade já obedeceu a uma seriação pela prova nacional de seriação – o famigerado exame de acesso à especialidade – esse sim um momento em que não há outra avaliação possível para cada candidato que não seja a de conhecimentos.

O que acontece com a nova forma de concurso é a subversão de tudo o que foi dito acima (até mesmo do ponto de vista da seriação).

Ao contrário de concursos anteriores, este foi promovido pela ACSS (centralizado), deixando o seu desenvolvimento a cargo das habituais ARS, mas definindo previamente a alocação de vagas, de uma forma no mínimo peculiar. A ARS Norte pediu 33 vagas (dos 145 que calculou necessitar), tendo em conta que tem 29 internos formados no norte a concurso, tendo-lhe sido alocadas 21 colocações. Uma situação semelhante ocorreu no centro, embora em menor escala, e o inverso no sul, onde foram alocadas mais vagas do que os internos a concurso formados na região. Isto tem múltiplas consequências e é revelador da desonestidade de quem toma estas decisões. Ora se todas as ARS calcularam necessidades de MF muito superiores às requisitadas, esta alocação limitada diferencial só serve um propósito: tentar forçar a deslocação de médicos para áreas que têm menos MF (e menos formação de MGF), sem recorrer a uma política de incentivo à fixação de profissionais nessas áreas. Este “método” tem dois óbvios problemas à partida: a injustiça para as regiões onde se faz mais formação de médicos e para os profissionais lá formados (dado que lá também há necessidades) e a perda de médicos da função pública, que entre serem forçados a mudar-se do norte para o sul ou saírem para trabalhar no privado ou no estrangeiro onde os vencimentos são consideravelmente superiores, têm um empurrão do concurso para a segunda hipótese.

As vagas alocadas a cada região são referentes a agrupamentos de centros de saúde (ACeS) específicos e não a toda a região ou a um posto numa determinada unidade. Isto gera novos problemas. O primeiro é não permitir à ARS a gestão dos convites para as USF como era feita anteriormente, porque todos os MF serão colocados imediatamente num local com necessidade pelo que a sua mobilização para uma USF será mais complicada (como aliás já acontece com os profissionais que já trabalham no SNS quando são convidados para formar USF – só são mobilizados se não houver impacto negativo no local onde já trabalhavam). O segundo é criar um problema aos MF e às unidades que se explica melhor dando um exemplo. Houve um ACeS que pediu três vagas tendo em conta que tinha 3 unidades que necessitavam de substituição de profissionais reformados, mas ao qual foi apenas alocada uma vaga. Este ACeS é constituído apenas por USF. Sabendo nós que as mobilizações vão ser dificultadas, podemos presumir que dificilmente estas USF terão possibilidade de incluir nas suas equipas os profissionais que já teriam convidado anteriormente, por outro lado de entre as três ver-se-ão forçadas a incluir o MF que escolheu a vaga do seu ACeS, algo que vai contra o espírito das USF conforme detalhado anteriormente. E pondo por hipótese que as três equipas rejeitam o profissional – seja lá por que motivo for – ou o profissional não quer trabalhar em USF (a adesão ao modelo é voluntária), o que pode o ACeS fazer com ele? Não o pode forçar às USF, mas não tem nenhuma unidade funcional onde o colocar. Ficará este profissional, o tal que escolheu a vaga por concurso seriado, forçado à mobilização? E as equipas cuja vaga não pode ser preenchida terão que substituir o profissional em falta indefinidamente, com prejuízo para os profissionais e para os utentes?

O facto de o concurso ser subdividido e desenvolvido independentemente por cada ARS tem ainda outro problema importante. Um MF que se candidatou a mais que uma ARS viu-se na situação de ter que escolher colocação na ARS de Lisboa e Vale do Tejo antes de ter possibilidade de averiguar a sua colocação noutras ARS, porque os concursos, entrevistas e publicação de listas seriadas não foram simultâneos. Isto é tanto mais relevante por sabermos que as ARS se veem pressionadas a fixar MF, de forma que lhes transmitem essa pressão, apresentando-lhes os contratos para assinar antes que possam fazer uma escolha livre e informada. Adiciona a isto que a definição do concurso está tão mal formulada que nem se percebe o que poderia implicar a recusa de um contracto, se a saída do concurso regional se a saída definitiva do concurso nacional e portanto cessando a ligação contractual à função pública.

O resultado deste concurso, se não houver alterações importantes, é a subversão do modelo das USF, o desrespeito pelos MF, o desrespeito pelas populações que contribuem para a sua formação, mas é mais do que isso. A alocação diferencial de vagas que tem o potencial de deixar USF com médicos a menos tem a perversão de aumentar artificialmente os utentes com MF, isto porque todos os utentes em USF se consideram com cobertura por MF e a ACSS desvia os novos médicos para novas listas que não tinham MF. Por outro lado, estes médicos, para além de poderem não aceitar esta colocação forçada, saindo da função pública (para manter a estabilidade pessoal e familiar podendo manter-se a trabalhar onde vive) ou emigrando (já que se veem obrigados a uma deslocação forçada, que seja para onde ganham muito mais), podem aceitar com o objectivo de regressarem mal possam ao seu local de preferência. Sem uma verdadeira política de fixação, é provável que estes profissionais, seja por concurso aberto seja por saída da função pública para outros projectos, acabem por abandonar a colocação, gerando maior instabilidade para as populações que foram servir, que se veem entre a ausência de médico e um MF temporário e contrafeito. É, por outro lado, ridículo que se esteja a fazer isto agora, dado que os números de formação de médicos e especificamente em MGF apontam para uma avalanche de candidatos futuros em que este problema se poria de qualquer forma, pelo que a pressa me parece ser apenas uma busca pelo tal aumento artificial da cobertura por MF no final de uma governação que foi péssima para a MGF, desde o abrandamento da reforma dos cuidados de saúde primários, passando pelo “acordo” de 2012 que pretende obrigar os MF a listas de 1900 utentes com evidente perda de qualidade dos cuidados e apenas culminando neste concurso abjecto.

De referir que a sobrestimação artificial da cobertura por médico de família já é real, como deixa escapar a última publicação da ACSS, de 16 de Fevereiro de 2015, onde ACeS com médicos reformados como Maia-Valongo ou que pediram vagas em concurso como Gondomar têm taxas de cobertura próximas dos 100%. Ou seja, há utentes que não têm MF, cuja vigilância as equipas das suas USF tentam assegurar, a custo e quando muito temporariamente, mas nunca equivalendo ao MF em falta, que são considerados, para “os números” e para “as notícias”, como utentes com MF. Se estes profissionais mal têm tempo (veja-se este artigo de 2010), mesmo trabalhando mais horas que o previsto, para as suas funções com uma lista de pelo menos 1700 utentes, imagine-se para onde vai a assistência, a acessibilidade e a qualidade, para onde vai a medicina familiar quando estes médicos prestam serviço a mais de 2000, ao tentar substituir o profissional em falta.

Uma possível solução para este problema, embora lhe reconheça imperfeições, seria fazer-se um concurso a dois tempos. Num primeiro passo, imediatamente após terminada a época de avaliação final de MGF, fazer a colocação dos recém-especialistas com convite para integrar USF onde haja necessidade de profissional. Num segundo passo, logo subsequente, fazer um concurso verdadeiramente nacional, com colocação definida para a vaga específica, não no ACeS ou na ARS mas na unidade funcional onde se pretende que cada MF exerça.

Por fim, claro, e à parte destes concursos, é necessária para o país uma política integrada de fixação de profissionais nas regiões deficitárias, algo que vai muito para além dos médicos e que não se soluciona atirando subsídios temporários para cima do problema criando assimetrias e discórdia entre profissionais e classes profissionais sem alterar a questão de base.

Declaração de interesses: sou interno de MGF, em formação numa USF onde colaborei no seguimento de uma lista de utentes cujo médico se reformou em 2014 e tenho a intenção de ficar a trabalhar nessa unidade, para a qual fui convidado, caso a minha avaliação final de especialidade e subsequente concurso em 2015 o permitam.

Sem meias palavras, sem meios direitos

Mais uma vez se discute na Assembleia da República a possibilidade de legalizar a adopção por casais do mesmo sexo. Infelizmente, por medo, por incapacidade, por estratégia ou por loucura, mostra-se mais uma vez difícil colocar a questão da forma que deve ser colocada. É introduzida como sendo uma alteração sustentada pelo superior interesse da criança. E é, de facto. Mas ninguém duvida que a criança está melhor com uma família do que numa situação de acolhimento em instituição. Responde-se que não, que afinal o que está por trás desta insistência é “apenas” a luta contra a desigualdade e discriminação dos casais homossexuais, a quem se quer dar o “direito de adoptar”, como se com isto se atropelasse o interesse da criança. É infeliz, no entanto, que o debate de seguida se centre muitas vezes nesta situação como “o menos mau”: é menos mau estar com famílias homossexuais do que em instituições.

As inqualificáveis intervenções de Teresa Anjinho, pelo CDS, e de Luís Montenegro, pelo PSD, no debate que decorreu hoje na AR só contribuem, intencionalmente, para mais confusão. Interessa-lhes tanto arranjar forma de não se aprovar a adopção por casais homossexuais que preferem fugir à discussão concreta e à análise da evidência que clarificam a tomada de decisão. Teresa Anjinho, para além da manobra habitual de acusar os proponentes de estarem preocupados com os direitos dos homossexuais e não com as crianças, ainda atira para o ar uma suposta enorme controvérsia neste tema (supõe-se, do ponto de vista científico?) que deve impedir a aprovação desta proposta, porque, invertendo o ónus, diz procurar (e, talvez por incompetência, não conseguir encontrar) evidência que prove que as crianças não serão prejudicadas por serem adoptadas por casais do mesmo sexo. Luís Montenegro, que não surpreende, desvia para o facto de já se ter discutido o assunto várias vezes, como se isto pudesse ser algum limite ou tivesse algum interesse para a aprovação ou não da proposta (e ainda aproveita para se vangloriar da liberdade de voto que o PSD dá à sua bancada – haja tempo para bom humor na AR). Duas tristes intervenções que importa referir para dispersar a névoa que elas criam e expor as questões reais que pretendem esconder.

Tentando, assim, clarificar, esta proposta centra-se no seguinte: no conjunto dos vários princípios que a nossa república defende, havendo um procedimento legal de adopção – estabelecendo assim que é no superior interesse da criança ser adoptada em vez de acolhida numa instituição – basta apenas uma regulamentação que defina quais são as famílias capazes de adoptar. A introdução de um outro limite legal, para além dos que já existem na avaliação das famílias que se propõem a adoptar – neste caso a proibição a um certo tipo de casais – só pode ser justificada por um dado novo, ou seja, para podermos justificar que a nossa lei actual não permita às famílias homossexuais adoptar, temos que demonstrar evidência científica de que essa adopção seria prejudicial para a criança adoptada, cedendo portanto a questão da igualdade perante a maior importância do interesse da criança. Está aqui a resposta a toda esta questão: não há. Não há grande controvérsia científica, a evidência que existe mostra que os casais do mesmo sexo são tão capazes de oferecer uma família e sustentar um desenvolvimento feliz e harmonioso como os outros.

Assim sendo, é a nossa lei que está errada, porque não há qualquer sustentação para eliminar casais homossexuais a priori do processo de adopção. É a nossa lei que está contra o superior interesse da criança, ao impedir potenciais adopções, depois de ser reconhecido que uma família é melhor que uma instituição de acolhimento. E só se alguma vez se viesse a constatar que as crianças adoptadas por um tipo de casal fossem prejudicadas, só aí se poderia discutir uma limitação legal. Aprovar esta proposta é tão só uma correção da expressão legal de um conservadorismo moralista cuja pesada herança temos que combater ponto por ponto.

Liberdades e ofensas

Desde o horrível atentado em que 12 pessoas foram executadas por aquelas criaturas que decidiram que sátira, ironia e desenhos num jornal são motivos para matar que se entrou numa discussão que faz muito pouco sentido. Desde o texto ao estilo “puseram-se a jeito” do Gustavo Santos às tiradas assustadoras da Ana Gomes no Twitter, já comentadas e bem aqui e aqui que me farto de ouvir e ler opiniões que roçam este absurdo (até o Papa de que as pessoas até têm gostado, pelos vistos). Não me vou por aqui com grandes considerações dignas de uma coluna de opinião. Quero só lembrar uns conceitos básicos que nos permitiriam evitar cair nestas tolices.

1 – A liberdade de expressão tem um nome muito intuitivo. Podemos dizer o que nos der na real gana. Queremos poder dizer o que nos der na real gana. A liberdade de expressão não quer dizer que não haja resposta a algo que se diga, mas quer dizer que não há barreiras iniciais ou consequências que o impossibilitem. Mas, claro, como a sociedade é mais do que um, nós temos, e bem, alguns limites ao que se pode dizer. São, claro, com consequências conhecidas a priori mas aplicadas a posteriori, não é novidade para ninguém falar-se da difamação ou do apelo à violência.

2 – Nós queremos uma sociedade em que cada pessoa possa acreditar no que acredita sem que isso signifique que seja limitada ou discriminada pelos outros. Queremos que essa pessoa se possa associar a quem comunga das suas crenças e queremos, dentro dos limites da ética e da lei, que possam definir os seus próprios códigos e regras. Mas a obrigação da sociedade em assegurar liberdade religiosa fica-se por aí. Ninguém deve nada às religiões. As suas determinações, as suas regras, os seus ditames e as suas blasfémias são de aplicação interna e absolutamente irrelevantes para o resto do mundo, excepto, claro, para a compreensão de quem nos rodeia.

Portanto, fazer desenhos com o Maomé é blasfémia? Para um crente, sim, para qualquer outra pessoa, é só um desenho. Gozar com fundamentalistas religiosos é criticável? Então não é, especialmente pelos próprios, o gozo está sempre sujeito a crítica e passeia muitas vezes nos limites do que cada pessoa considera bom gosto. Gozar com fundamentalistas religiosos é útil? Claro que é, usar a ironia para demonstrar a falha lógica e humana dos “argumentos” que sustentam opiniões e acções radicais perigosas é muito importante e tem um impacto que as discussões no final do telejornal simplesmente não conseguem. Mas o que raio é que isto interessa? Nada. Para justificações e atribuições de culpa, nada disto interessa. Pouco me importa se o desenho na capa do jornal tem Maomé aos beijos com Cristo, se tem a Branca de Neve a fazer um bolo de chocolate ao Rezingão.

Defender a liberdade de expressão significa que as pessoas podem expressar-se, que podem ser amadas ou odiadas por isso, mas continuam a poder expressar-se. Em última instância, isso implica defender quem se expressa livremente de quem quer limitá-lo. No caso, significa até às últimas consequências defender o direito de quem trabalhava no Charlie Hebdo de fazer o que fazia. Havia desenhos que eu não gostava? Vários. Havia piadas que mau gosto? Eu acho que sim. Os líderes religiosos ou os crentes têm alguma coisa a ver com o que se publica ali, para além de terem uma opinião sobre isso? Não. 

Se quiséssemos – e não queremos, estou certo – limitar a possibilidade do Charlie ter representações do Maomé porque numa religião são tabu, teríamos também que limitar as referências ao deus dos cristãos, porque é pecado dizer o seu nome em vão. Por outro lado, teríamos que proibir os padres de dizer na missa que os pecadores vão para o inferno sofrer tormentas eternas – isso seria um insulto muito mais grave a todo o mundo não cristão. Teríamos que impedir tanto do que está nas escrituras sagradas das religiões que mais valia proibir os livros completamente. Teríamos, levando ao absurdo, que parar de nos referir uns aos outros, teríamos todos que olhar para quem difere de nós como se houvesse um enorme campo de forças que não podemos atravessar.

Se quisermos – e estou certo que muitos de nós querem – um mundo integrado, em que haja uma civilização que inclui todos os seres humanos, em que haja mais compreensão dentro da variedade, em que as diferenças não signifiquem paredes, em que as crenças ou costumes deixem de ser barreiras, então temos mais é que poder falar delas, gostar ou detestar, elogiar ou criticar e sim, gozar.

Mas não estou eu, com tudo isto, a incorrer no mesmo que critico? Não. Por um lado, porque acho que os “gustavos” têm tanto direito de dizer o que têm dito como eu de os criticar. Por outro, porque eu nunca, de nenhuma maneira, admitiria sequer entrar no ridículo discurso de culpabilização das vítimas. Quando alguém decide fazer justiça pelas próprias mãos, independentemente do seu código pessoal, do que defina para si mesmo como justiça, matando os que considera culpados, o único responsável é ele mesmo. O único culpado é ele mesmo. O monstro é ele mesmo. As vítimas não se puseram a jeito, por mais que o monstro tivesse avisado antes que se eles fizessem aquilo os matava, as vítimas viveram como devem poder viver e morreram porque umas bestas decidiram matá-los. Não há nenhuma outra interpretação para isto.