Frutos de uma governação insalubre

Todos sabemos que a chegada do frio e chuva ou neve configura, pelo menos para já, o habitual inverno. Também sabemos que esta é uma época em que há mais problemas de saúde: mais infecções respiratórias, a gripe – que até é conhecida como sazonal – e as múltiplas descompensações de doenças crónicas que vêm com as alterações climatéricas. É por isso habitual haver um especial cuidado com a organização dos serviços de saúde nesta fase, particularmente na altura que coincide com as celebrações e férias habituais. Este ano, tudo parece ter falhado. O Bastonário da Ordem dos Médicos, em declarações à comunicação social, culpou o Governo pelos problemas na resposta dos serviços de urgência e suas consequências e, de facto, parece que a responsabilidade pela insuficiência da resposta dos serviços de saúde só pode estar no Governo.

Vejamos em mais pormenor: em vários serviços de urgência os tempos de espera para atendimento ultrapassaram qualquer limite razoável, tendo havido mesmo mortes de doentes há horas no serviço mas ainda sem atendimento; os directores dos serviços de urgências queixam-se de ausências de médicos sem capacidade de substituição; simultaneamente ouvimos bombeiros queixar-se que as suas macas estão a ser retidas durante horas nas urgências – explique-se, porque não há equipamento no hospital para poder transferir o doente para macas próprias – o que deixa os bombeiros incapazes de atender outras situações de necessidade.

Respondem pessoas próximas ao Governo, como por exemplo o José Matos Correia ontem na RTP Informação, que o Governo não pode ter culpas porque já investiu muito dinheiro no SNS e porque o Governo já autorizou contratação de mais médicos. Fala-se também na comunicação social do facto dos médicos estarem agora obrigados a mais horas de urgência no contexto do aumento do horário de trabalho e especula-se porque não terá isto sido suficiente para evitar este problema.

Por outro lado, dizia-se ontem na SIC que a presidente da Associação Portuguesa dos Administradores Hospitalares afirma que mais carga horária não corresponde a mais eficiência, algo que nos lembraremos todos de ter discutido há uns tempos aquando da decisão do governo de impor a transição das 35 para as 40 horas semanais e que vários municípios ainda contestam. Diz ainda que o que é preciso para melhorar esta situação é investir em cuidados primários e continuados. Mais tarde, na TVI24, Marta Temido admite que o problema está também relacionado com o desinvestimento no SNS.

Assim, esta questão tem que ser vista por partes, para que se detectem as falhas e se proponham as soluções.

– Os cuidados de saúde primários devem ser o primeiro contacto dos utentes com o SNS, excepto em alguns casos urgentes ou emergentes. Ora, nos últimos anos diminuíram-se os Serviços de Atendimento Permanente (SAP) ou Serviços de Atendimento de Situações Urgentes (SASU), que complementavam o atendimento nos centros de saúde a situações de doença aguda, limitou-se a criação de unidades de saúde familiar e obrigou-se ao aumento de utentes por médico de família, ignorando que os que cumprem os indicadores contractualizados já passam bem mais que as antigas 35 ou as actuais 40 horas semanais a trabalhar na unidade, ou seja, limitaram-se a diminuir a acessibilidade aos utentes. Se cada médico tem mais utentes e o dia não estica, tem que tentar enfiar mais consultas no mesmo dia e, ou as faz a correr e vê mal mais utentes, ou vê bem os utentes, como deve, e portanto não dá consulta a tudo o que é necessário. Se os utentes não têm SAP e temem que o seu centro de saúde não possa, ou constatam mesmo que não pode dar atendimento, não lhes resta alternativa que não o recurso à urgência hospitalar.

– Mais investimento nas unidades de cuidados continuados permitiria, por outro lado, facilitar altas dos internamentos, o que se repercute numa agilização dos internamentos a partir da urgência, libertando os profissionais para o atendimento de novos casos.

– As urgências hospitalares não conseguiram lidar com o aumento de utentes que é típico desta altura do ano. Por um lado, é um facto que muitos utentes que lá recorreram não o deveriam ter feito, dada a sua situação não o justificar, mas este problema já é conhecido e habitual, não é específico desta altura. De resto, aplacá-lo implicaria não só o já referido investimento nos cuidados de saúde primários, estabelecendo uma rede mais completa, com uma razão de utentes por médico que permita exigir às unidades o atendimento de todas as situações de doença aguda que não implicam cuidados hospitalares, por ventura alargando o horário de atendimento nesta fase do ano ou, de forma mais uniforme, reestabelecendo uma rede de SAP que permita aos utentes ter confiança que serão atendidos nos cuidados primários. Por outro lado, o problema está também nos próprios hospitais. Depender de empresas intermediárias para subcontractação, algo que foi feito apenas para retirar poder negocial aos médicos, não ajuda. Primeiro, porque estas empresas funcionam mal, apresentando médicos com os quais ainda nem falaram aos hospitais, apresentando o mesmo médico a vários hospitais simultaneamente, porque em alturas como esta não são capazes de dar resposta. De resto, limitam-se a ser um desperdício de dinheiro. Os serviços de urgência, tal como qualquer outro, precisam de ter profissionais no seu quadro suficientes para o trabalho habitual e para lidar com situações de maior afluência ou de falha de algum profissional. São os profissionais que pertencem ao serviço, que o têm como “a sua casa”, que planeiam o seu trabalho a longo prazo naquele serviço que melhor “o servem”. São estes e é com estes que se consegue planear a actividade para todos os momentos, que se consegue rapidamente substituir um profissional em falta, que estão capazes de trabalhar mais que o previsto, que o habitual, para que o seu serviço não falhe numa altura de imprevisível necessidade (que nem é o caso actual).

– Não podemos esquecer também a falta de literacia em saúde em Portugal, que resulta em insuficiente utilização da linha Saúde 24, em sobrevalorização de certo tipo de situações de saúde, em recurso mais frequente e desnecessário à urgência hospitalar. É um tema ao qual pretendo voltar noutra altura, até porque é um problema constante, não sendo causa específica do caos verificado nas situações aqui comentadas.

 

No fundo, esta situação é responsabilidade de quem, por incompetência ou ideologia, leva o SNS a um funcionamento medíocre, com o mínimo de pessoal possível, sem margem de manobra, a depender mais de empresas intermediárias do que de pessoal próprio, com falta de capacidade de preparação ou autonomia de gestão, com falta de investimento em áreas fulcrais. Depois de tudo o que já se passou na educação, na justiça, na segurança social, não devíamos chamar a isto uma política de austeridade mas sim uma política de calamidade.

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A queda de um Coelho

O Coelho deitou-se estafado ao final de mais um dia austero. Finalmente podia parar, descansado pela confiança da chegada da época da dormência generalizada.
Ao encostar a cabeça na almofada, no entanto, teve uma sensação vertiginosa intensa. Estaria já a dormir? Faria parte de um sonho no país das maravilhas? Pouco provável. De repente, num piscar de olhos, uma criatura parece materializar-se à sua frente, como se pairasse sobre ele.
– Eu sou o fantasma do passado…” – dizia a entidade, subitamente parecida com um cherne, quando foi interrompido pelo Coelho.
– Do Natal passado?
– Do desgoverno passado.
– Que fazes no meu sonho? – Perguntou o Coelho ainda confuso.
– Há muito que não sei o que é sonhar. Venho para te lembrar do que prometi quando fugi e do quanto falhei em cumprir.
– O que tem uma promessa que ver com cumprir? – A confusão era cada vez maior.
A criatura hesitou, mas não podia parar.
– Enfim. Eu vou falar na mesma, pode ser que ainda percebas.
– Força. Tenho todo o tempo do mundo enquanto espero pela viragem.
– Quando fugi para o Mar Bruxelense, disse que era uma honra para todas as bestas de Portugal ter um peixe a nadar nas melhores águas do Oceano Europeu. Que iria ajudar Portugal como pudesse, mesmo sabendo que era patético um cherne em Bruxelas dizer tal coisa. Olha para mim agora. Ainda te lembras do que prometeste em 2011?
– Não. – O Coelho nunca tinha tido um sonho assim.
A sensação vertiginosa agravou-se de súbito. Continuaria a cair no sonho? A figura que pairava à sua frente mudou.
Agora encontrava-se perante uma besta enorme, de formas mal definidas, que parecia sentado num Banco e agrilhoado a um conjunto de papéis que o pareciam manietar.
– Eu sou o fantasma do presente.
– És amigo do anterior? – Perguntou o Coelho. A sensação de queda estava a piorar. E ver um monstro controlado por papéis voadores não o estava a ajudar a estabilizar.
– Às vezes, quando o Mar de Frankfurt encontra o dele. Mas a minha função aqui é vir avisar-te.
– Também tu? Olha que o aviso do passado passou-me ao lado. E esta vertigem não passa, não me podes ajudar com isto?
O monstro baixou um dos seus tentáculos (seriam tentáculos?) que estava crivado de símbolos de percentagem. A vertigem do Coelho pareceu melhorar ligeiramente, mas continuava em queda. Ainda o tentou ajudar de outra forma, mas os papéis pareciam prendê-lo.
– Os avisos que eu vim fazer… – Outro papel impediu-o de falar.
O Coelho não estava a perceber, aquele monstro não fazia sentido nenhum e ele nunca tinha sido particularmente perspicaz nestas coisas. De repente o peso das algemas aumentou e o monstro afundou-se. Arrastado pelo movimento, o Coelho deu uma pirueta. Quando conseguiu parar de rodar, embora ainda a cair, cada vez mais depressa, algo a apareceria ao longe. Seria uma planta? Uma árvore? Foram-se aproximando, o Coelho e esta figura, e as suas formas iam-se definindo. O tronco era oco. Dos ramos caiam moedas continuamente para o Fundo. As raízes, demasiado activas para uma árvore normal, pareciam subir e atacar os próprios ramos, espremendo-os e moldando-os, secando-lhes as folhas e flores. Uma voz, sabe-se lá vinda de onde, acordou o Coelho do seu estupor.
– Eu sou o fantasma do futuro.
– E voltaste para quê?
– Porque volto sempre. E de cada vez que volto, percebo tudo o que ficou mal feito. Vim avisar-te disso. Quando olhares para trás, vais perceber que o que dizias ajudar não ajuda, que o que dizias melhorar não melhora, que o que forçaste devias ter impedido…
– Mas se sabes isso, porque fazes outra vez o mesmo?
– Porque é o melhor, porque tem que ser, porque não há outra maneira…
– Pois. Não sei se estou a perceber.
– Tens que olhar para o que fazes, tens que perceber o que já falhou, o que falha sempre…
– Mas se não há alternativa, o caminho tem que ser este! – O Coelho já se tinha esquecido que estava a cair, depois de tanto tempo e tantas aparições inesperadas. – E tu depois de toda essa treta ainda tens a lata de querer ensinar alguém?
O Fundo tilintava cada vez mais, de forma que a voz foi apagada pelo barulho à medida que o Coelho, distraído, continuava a cair. Ao seu lado passavam objectos que nem notava, distraído a rir-se destas visitas sem sentido. Só podia mesmo estar a sonhar. Apercebeu-se da escuridão, como se estivesse num túnel. Haveria uma luz ao fundo? Seria a viragem? A sua queda ia acelerando à medida que a sua ilusão da viragem se tornava mais e mais real até que descobriu. Não era um túnel, era um poço. Não era um sonho, era real. Esmagado no chão, o Coelho morreu ainda incrédulo, apercebendo-se que com ele tinha arrastado todo o seu mundo para a catástrofe. Antes fosse um sonho. E, qual tenor, exalou: “sonhos que sonhei, onde estão?”