A lente injusta e desumana de João Pedro Marques

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                              Juventude em Marcha, Pedro Costa, 2006 [Filme]

 João Pedro Marques assinou um artigo de opinião no qual é sintomática a primária desonestidade intelectual do autor a partir do momento em que este decide tornar operativa uma arma de estéril função retórica cujo alcance é nefasto. Refiro-me à discursividade digna de propaganda que subjaz à indignação pelo “politicamente correcto”. Ouve-se muita gente, dos mais variados espaços políticos mas não só, a transformar esta indignação numa forma de auto-elogio ou numa demonstração vaga de uma suposta frontalidade: uma espécie de “João sem medo”, em mau. Sempre que assisto ao uso depreciativo desta expressão só consigo ouvir barulho e portanto nada perceber. Considero-a uma função fática dos opinadores desesperados, dos bárbaros. É para mim o canto do cisne de quem mostra não querer conversar – renuir versões – e assim somente calar quem deles diverge, usando para isto uma expressão que não produz sentido analítico e que através do modo autoritário encerra consequentes discussões outras. Revela não só a fragilidade das estruturas argumentativa e ideológica, mas sobretudo uma mundividência egocêntrica que subsiste através da conservação de discursos tão acríticos quanto hegemónicos. Há um silenciamento evidente que é imposto e perpetuado através do repúdio daquilo que está por trás de tão oca expressão: muito antes de políticas, razões de ordem ética.

Dito isto, decidi ridicularizar algumas passagens da mal conseguida opinião.

O texto é mal encetado e isso é no entanto precioso por forma a podermos observar através da lente de JPM. Começamos logo com a fantasia em torno da definição de identidade por contraste. Não lhe passa pela cabeça que uma pessoa da “maioria” se possa sentir desconfortável com as descrições que lê no museu. Se calhar, JPM acha que eu teria de ser uma árvore para poder defender a floresta. De seguida, JPM considera que “preto, negro, esquimó, mouro, anão ou selvagem” são expressões “tidas”, note-se!, por desagradáveis ou discriminatórias. Isto é, algumas pessoas – nas quais JPM não se inclui necessariamente – acham que estes adjectivos não devem ser usados para descrever outras pessoas. Pois eu faço-lhe a delicadeza, JPM: estas palavras criam de facto desagrado e discriminação, pois são outra coisa maior: violentas, todas elas.

O segundo parágro abre com uma referência a um daqueles conceitos que consegue tudo e nada dizer: Ocidente. Pergunto: de Quem? De Onde? E, já agora, para Onde? Juro que não consigo perceber como é que alguém hipoteticamente informado consegue ainda fazer uso destes cadáveres conceptuais – fico cheio de vergonha alheia. É curioso também notar que JPM considera insólitas as atitudes geradas pela vontade de não ofender ninguém(?!). Já em jeito de processo autofágico, através de um exemplo que não reforça mas destrói o argumento, JPM recupera Winston Smith e respectivo trabalho no Ministério da Verdade, em 1984. JPM está justamente a fazer aquilo que critica através do exemplo que cita: a manutenção de uma verdade totalitária que oprime e subjuga através da recusa de fenómenos de inclusividade, inclusão que, de forma abjecta, chama politicamente correcto – a tal atitude gerada pela vontade de não ofender ninguém.

Outro episódio autofágico decorre em seguida, quando JPM escreve: “importa sublinhar – pois é muitas vezes esquecido – que, tal como as minorias étnicas, os europeus também são gente, também têm uma cultura a preservar, e também têm o direito de se sentir incomodados com a forma como a direcção de um museu lida com as obras do passado”. Como creio que JPM não se está a dirigir aos europeus de Quinhentos, então concordo com o escreve, pois não faltam hoje europeus que podem ser descritos com todas aquelas palavras tidas por desagradáveis e discriminatórias. Ou JPM acha que esses europeus não são de raça europeia?

No penúltimo parágrafo voltamos a encontrar aquela ideia acima referida sobre a definição da identidade por contraste, agora reforçada pelos europeus do Século XXI. Outra vez, JPM considera que o museu deve somente explicações aos “preto, negro, esquimó, mouro, anão ou selvagem” visto que eles – percepcionados através de uma mundividência essencialista e racista – é que se podem “ofender” com o discurso adoptado pelo museu. Já a segunda metade deste parágrafo é regada por uma doçura colonial em jeito nostálgico. Note-se a modalização melíflua: “quem foi humilhado foi o menino escravo que está representado naquele quadro. Ou naquele outro”. Mais parece uma canção de embalar de alguém que pousa a mão sobre o ombro de outrém enquanto de dedo em riste, apontando para os vários quadros, diz: “para que é que te estás a queixar se não és tu?!”. E termina com o recurso ao decreto histórico: a escravatura – essa maçada – acabou, logo, já não há problemas raciais, já não há formas de racismo latentes, já não há conservação de lógicas e discursos de poder alimentados ao longo de Séculos pela cultura e acção europeias, etc. É inacreditável como este artigo de opinião consegue colocar tudo isto em evidência e deste modo auto-destruir-se uma vez mais.

Na última parte do artigo, JPM decide retomar o labor de Winston Smith e lutar furiosamente contra os apologistas do politicamente correcto e contra aquilo que considera ser o adultério da verdade histórica (lembremo-nos do Ministério para o qual Smith trabalhava). Se existe uma verdade histórica, então eu quero conhecer a da “Jovem Negra” que está no Rijksmuseum, mas contada por ela.

Só mais uma coisa: politicamente correcta é a publicação desta sua opinião, João Pedro Marques. Eu pediria desculpa a mim próprio.

 

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Desrespeito pela democracia

Ao contrário do que defenderam os líderes dos partidos de esquerda representados na Assembleia da República na próxima legislatura, não acho que a indigitação de Passos Coelho seja uma “perda de tempo” e menos ainda um “golpe de estado”, como se ouve por aí dizer. O discurso de Cavaco Silva foi de uma falta de espirito democrático, de isenção ideológica, de lógica, que até se torna vergonhoso. Mas a sua opção por indigitar o líder da coligação que tem mais votos parece-me correcta. Desde que este vencedor, ainda que minoritário, esteja disponível e capaz para organizar um governo e um programa para apresentar ao parlamento, o presidente da república deve permitir-lho. Passada que está a bola, cabe agora à AR pronunciar-se perante as escolhas de PPC. É por isto mesmo que a indigitação de Passos Coelho não foi perda de tempo, e bem pelo contrário, permitiu a maturação do nosso sistema político, ao expor os deputados – e de acordo com os votos dos portugueses – a uma nova realidade, de uma maioria de votos e mandatos que não quer entendimentos com o vencedor das eleições. É esta mesma situação que torna o discurso do presidente ainda pior. Para além da ter excluído partidos políticos da nossa democracia de qualquer potencial participação governativa, desrespeitando a república a que preside, para além de ter justificado a indigitação de PPC com a potencial reação de mercados financeiros a uma alternativa (sem sequer nomear os partidos a que se refere), desrespeitando a escolha democrática dos eleitores, o ainda presidente tentou por fim influenciar os deputados num momento histórico e muito relevante da maturação do parlamento e, portanto, de toda a democracia portuguesa. Diz-se frequentemente que Cavaco Silva faz o que faz ou diz o que diz por ser muito institucionalista, mas parece não passar de mais uma desculpa para que os seus múltiplos percalços não obviem a sua obstinação autoritária e ideológica.
Mas a vergonha da intervenção do presidente da república foi apenas o primeiro mau momento desta fase. Seguiu-se hoje a apresentação dos membros do novo governo que Passos Coelho propõe. O que PPC e Paulo Portas nos apresentam é de uma indigência que quase alcança o quão fundo chegou o presidente. Mantendo-se o irrevogável Portas na sua inútil função, segue-se este desastre:

  • aumentam ministérios – indo contra as suas próprias ideias ao formar governo em 2011;
  • recuperam o ministério da cultura – que ainda há pouco era de tal forma um despesismo que lhe bastava uma ridícula secretaria de estado mal amanhada – juntando-o, talvez para poupar secretárias, à igualdade e à cidadania, promovendo para a sua tutela Teresa Morais, cujas opiniões sobre o casamento entre pessoas do mesmo sexo ou questões de identidade de género são sobejamente conhecidas e pouco igualitárias;
  • misturam duas maravilhosas referências ao caso do BES, por um lado promovendo Fernando Negrão a ministro da justiça – já que falhou a eleição para presidente da AR – depois do seu papel na comissão de inquérito, e por outro escolhendo para ministro da administração interna Calvão da Silva, o senhor que atestou a idoneidade de Ricardo Salgado perante o Banco de Portugal quando Carlos Costa se preparava para lha retirar;
  • promovem a ministro da saúde o secretário de estado Fernando Leal da Costa, figura cuja incompetência e inadequação ao cargo foi constantemente apontada pelos profissionais de saúde e cujo momento mais baixo, que não resisto a lembrar apesar de correr o risco de esquecer tantos outros, foi o seu comentário a uma reportagem da TVI que mostrou más condições e insuficiência do serviço em urgências após o pico da gripe: “o que nós vimos foram pessoas bem instaladas”.

Mais haveria para dizer, mas basta isto para ilustrar o desrespeito da liderança da coligação Portugal à Frente pelos portugueses. A justificação frequentemente repetida na comunicação social para este resultado é a da dificuldade em formar um governo que está morto à partida. Ora, se assim é, quanto mais não seja por uma questão de dignidade, cabe a Pedro Passos Coelho desistir e devolver a responsabilidade ao presidente da república. Apresentar esta formação, especialmente se for reconhecidamente por incapacidade de fazer um governo em condições, é inaceitável. Resta ter esperança de que este seja mesmo o governo mais curto da democracia portuguesa.

A democracia e a comunicação social livre

Não é preciso referir a censura do Estado Novo, como a SIC fez – e muito bem – no Jornal da Noite de ontem.

Não é preciso lembrar as primeiras eleições livres em Portugal, como fez o Expresso no seu trabalho sobre o caminho para a Assembleia Constituinte. Não é preciso ir longe na breve história da nossa democracia em busca de momentos ilustrativos.
Basta estar atento agora.

Já várias vezes, na legislatura actual, o aparecimento de um documento na imprensa e consequentes reações fizeram partidos ou grupos parlamentares inverter sentido de marcha. Não é importante a análise caso a caso para este ponto. Basta esta constatação para demonstrar a importância de uma comunicação social livre.

Escrevo isto não só para mostrar repúdio pelo projeto – agora órfão – de criar uma comissão para aprovar previamente os planos de acompanhamento da campanha eleitoral dos meios de comunicação social. Escrevo também para lembrar (e para me lembrar) do valor da democracia e do trabalho que é preciso fazer para que ela seja real, para que se mantenha, para que se possa aprofundar.

A informação, a participação do cidadão, a responsabilização do representante ou governante são condições que definem uma verdadeira democracia.

Hoje é 25 de Abril. Celebremos os 41 anos. Celebremos os 40 anos. Mas este ano – como noutros – celebremos com a tristeza de constatar a fragilidade do que conquistámos e temos como definitivo. Que nos seja útil.

Viva a liberdade!

O empolamento da abstenção

Quarenta anos depois das primeiras eleições livres em Portugal após a queda da ditadura, os valores da abstenção eleitoral não têm parado de aumentar. Passamos das longas filas para votar para taxas de abstenção enormes: 47,4% nas eleições autárquicas de 2013 e, máximo absoluto, 66,09% nas europeias de 2014. Jorge Miguéis, Director-Geral da Administração Eleitoral, afirma que estes números se devem ao facto de o recenseamento estar “relativamente empolado” pelo facto de muitos emigrantes manterem a sua residência e, por conseguinte, o seu recenseamento eleitoral em Portugal. Como se já não bastasse verem-se obrigados a seguir o que se passa no país à distância, os emigrantes são ainda tratados como prevaricadores, culpados pelo empolar da abstenção.

Sendo abusivo refugiar-se nos portugueses emigrados que mantêm o seu recenseamento em Portugal para justificar as taxas de abstenção, é essencial que se revejam os mecanismos de recenseamento e participação eleitoral da diáspora. Paralelamente, devem actualizar-se os cadernos eleitorais, de modo a que reflictam os verdadeiros valores de abstenção. A saída do país não se faz nunca de ânimo leve. A grande maioria dos mais de 100 mil portugueses que, a cada ano, tem deixado o país, fá-lo por não encontrar qualquer alternativa. O mínimo que o Estado deve fazer é facilitar a participação eleitoral dos portugueses residentes fora do país. Actualmente, é mais fácil fazer-se a alteração da morada – que pode ser feita em casa, através do portal do cidadão – que o recenseamento eleitoral, que obriga ao deslocamento ao Consulado, muitas vezes localizado a dezenas, quando não centenas de quilómetros de distância. Convém referir que a alteração da morada para o estrangeiro tem, como consequência imediata, a perda da capacidade eleitoral. Os emigrantes são pois automaticamente esquecidos, passados para uma segunda categoria de cidadãos.

Como se tudo isto não bastasse, a actual maioria parlamentar continua a dificultar ao máximo a participação dos emigrantes, criando, quando não já existentes, novas barreiras. Um exemplo claro é a eleição para o Conselho das Comunidades Portuguesas onde, contrariamente ao que aconteceu em eleições passadas, onde bastava a inscrição consular, passa a ser obrigatório o recenseamento eleitoral no estrangeiro. A consequência é clara: o colégio eleitoral é extremamente reduzido, afastando, uma vez mais, os portugueses da vida pública e política no estrangeiro. Um exemplo claro desta situação é o Reino Unido, onde estão inscritos nos Consulados 200 mil portugueses, dos quais apenas 900 estão recenseados. Tornam-se, portanto, irónicas as afirmações de Marco António Costa, que acusa a oposição de ter medo do voto dos emigrantes, quando é a maioria parlamentar da qual ele faz parte a tudo fazer para não permitir uma maior participação dos portugueses emigrados.

É necessária a revisão do modo como o recenseamento eleitoral é feito no estrangeiro. À semelhança do que acontece com a alteração da morada, o recenseamento eleitoral deve também poder ser feito através do portal do cidadão, não obrigando ao deslocamento ao Consulado. Devem também ser revistos os modos de votação dos emigrantes – actualmente por correspondência para as eleições legislativas e presencialmente para as restantes – devendo estudar-se a possibilidade do voto electrónico, em urna ou à distância. Finalmente, deve também ser feita uma revisão da lei, de modo a que os emigrantes possam optar por votar para os círculos da emigração ou para os seus círculos eleitorais em Portugal.

O Contrato de dívida, o contrato social e a solidariedade entre credores e endividados

É inaceitável que a retórica da austeridade  dissocie e subalternize o contrato social ao contrato de dívida. É inaceitável a máxima de acção “Honra as tuas dívidas” tornar-se um imperativo de natureza categórica que não se deixa condicionar pelo contrato fundador que nos liga como comunidade, nem sequer por máximas como “Honra primeiro as tuas obrigações humanitárias”. A inversão de peso destas duas máximas só não tem ganhado contornos mais chocantes por serem politicamente compartimentadas e estancadas em planos distintos – enquanto o contrato social é enquadrado como se fosse apenas um assunto interno, a dívida é contratada internacionalmente sem nunca olhar para dentro  -, evitando-se, ou retardando-se pelo menos, qualquer contaminação entre os dois planos e as suas legitimidades. Mas este é só mais um expediente retórico da austeridade.

Qualquer contrato de dívida deve pressupor um horizonte comum de acordo quanto às condições aceitáveis para a sua consumação e quanto às condições que devem determinar o seu cancelamento. E deve mesmo implicar activamente as partes contratantes do contrato de dívida na preservação das melhores condições possíveis para a sua resolução bem sucedida. Com efeito, as obrigações explícitas do endividado para o seu credor são acompanhadas por obrigações de solidariedade, pelo menos tácitas, deste para com aquele. O credor repudiar obrigações solidárias para com o endividado em condições de justificável solidariedade, deve mesmo legitimar um direito de desobrigação do endividado.

Esta interdependência solidária que a austeridade injustamente recusa é tanto mais sensível quanto mais os contratos de dívida dizem respeito às funções do Estado ligadas ao contrato social. Uma dívida pública contraída para fazer face às obrigações sociais de uma comunidade nacional, mesmo às suas necessidades de investimento para recuperar a condição económica capaz de fazer face ao seu serviço de dívida, pressupõe um comprometimento recíproco das partes envolvidas nos valores e objetivos do contrato social do endividado. E não é muito diferente a circunstância em que a dívida é privada mas se agrava para acudir às necessidades básicas que reportamos como próprias ao plano humanitário. Por isso, só posso considerar que o governo grego faz justiça ao repor a energia eléctrica a 300 mil pessoas cuja situação social está abaixo do limiar de pobreza. E como esta muitas outras obrigações sociais desta ordem devem activar os deveres de solidariedade de credores.  Nenhum contrato de dívida pode, de boa-fé, sobrepor-se ao contrato social.

 

A vitória do Syriza e os primeiros sinais da governação

A vitória do Syriza de Alexis Tsipras representa um virar de página na União Europeia. Pela primeira vez desde o início da crise em 2008, um país da União e da zona euro elege um governo anti-austeridade. Num ano com vários processos eleitorais para a escolha de novos governos, a vitória do Syriza terá certamente consequências. Aliás, as reacções de alguns dos actuais líderes governativos com o lugar em risco, como David Cameron e Passos Coelho, não se fizeram esperar. O que podemos então esperar desta vitória e o que nos dizem as primeiras decisões de Tsipras?

Com 149 lugares em 300, o Syriza ficou a 2 deputados da maioria absoluta pelo que, a fim de evitar novas eleições, teve que encontrar um parceiro governamental. Olhando para a distribuição dos lugares, apenas dois partidos se apresentavam como verdadeiras possibilidades, o “To Potami” e o “Anel”. Contrariamente ao que a grande maioria dos analistas previa, Tsipras optou pelo Anel, partido de direita, nacionalista, anti-austeridade, formado por dissidentes da Nova Democracia e com um historial de declarações xenófobas e homofóbicas. O agora ministro da defesa e líder do Anel, Pannos Kammenos, nem há dois meses sugeriu que os judeus na Grécia não pagavam os seus impostos.

Contrariamente a vários na esquerda em Portugal, tenho muita dificuldade em aceitar esta aliança. Concordo que o momento é delicado e que o combate à austeridade é a missão principal deste governo, o que pode fazer com que o consideremos como um governo de salvação nacional. No entanto, há linhas que não me parecem ultrapassáveis, e a xenofobia e homofobia estão entre elas. Mais, sabendo-se a presença que a extrema-direita tem nas forças armadas gregas, colocar alguém como Kammenos à sua frente pode ter efeitos secundários imprevisíveis. Outra das decisões tomada nestes primeiros dias de governação com a qual não posso, de modo algum, concordar, diz respeito ao número de mulheres no governo: apenas 6 em 39 e nenhuma como ministra.

A mensagem parece assim ser clara e ir ao encontro daquilo que Tsipras sempre prometeu: a austeridade é para ser combatida e o pagamento da dívida grega deve ser revisto. Nesse sentido, a escolha de Yanis Varoufakis como ministro das finanças deve ser vista com muito bons olhos. Este economista, que foi um dos subscritores do manifesto pela reestruturação da dívida portuguesa e que participou no projecto Ulisses, tem vindo desde há muito a propor soluções para a reestruturação do pagamento da dívida grega. Outra decisão positiva em relação à organização do governo é a criação de um ministério da Restruturação da Produção, do Ambiente e da Energia, o que pode, assim espero, significar que Tsipras encara a saída da crise como uma oportunidade para a promoção de um desenvolvimento ecologicamente respeitador. Um dos “secretários de Estado” deste ministério, com responsabilidades na área de ambiente e energia é aliás do “Oikologoi Prasinoi”, partido ecologista grego, que concorreu conjuntamente com o Syriza. As decisões do novo governo também não se fizeram esperar: em dois dias de governação, o salário mínimo foi aumentado e foi aprovada a electricidade grátis para 300 mil cidadãos caídos nas malhas da pobreza. Foi também anunciada a suspensão do processo de privatização das eléctricas e o facilitamento do pagamento de impostos atrasados.

Nós, portugueses, mas também os restantes europeus, devemos seguir com atenção o evoluir da situação na Grécia. Provavelmente, nunca um governo europeu foi tão escrutinado como será o governo Tsipras. Mais do que nunca, é necessária a solidariedade a nível europeu de modo a, conjuntamente, sairmos da crise que atravessamos. Urge a realização de uma conferência europeia entre credores e devedores para a resolução da dívida e o governo grego pode ser preponderante na convocação da mesma. Estou seguro que apesar dos erros cometidos e de todos os erros que este governo certamente cometerá, a vitória do Syriza foi o melhor que poderia ter acontecido para a Grécia e para a União Europeia. O primeiro passo foi dado, compete-nos agora a nós seguir a caminhada.

Acerca de racionalidade

Há muitas coisas que, enquanto cidadão Europeu, me têm perturbado ao longo dos últimos anos. A lista é longa. Começa com a inversão do propósito do projecto Europeu. (Antes, um projecto de cooperação, de desenvolvimento, de alargamento dos direitos, de paz consertada. Hoje, um projecto de hierarquização de nações, de retrocesso social, de compressão e aniquilação de direitos, e de uma espécie de Guerra Fria intraeuropeia.) Continua com a falta de eficácia e solidariedade no combate às dívidas soberanas. Com a falta de fraternidade, como muito bem dizia o Jorge Pinto aqui há dias, entre Estados-membros. Com a falta de visão, a longo prazo, do que deve ser a Europa. Podia falar de tudo isto.

Mas não. Há um outro assunto que me tem vindo a perturbar ainda mais. Um assunto que, talvez por não ser tão evidente, se esconde na espuma dos dias. Se esconde por detrás de uma naturalização que diariamente lhe temos feito. Refiro-me à questão da racionalidade. E a minha constatação é a seguinte: hoje, uma coisa que não tem racionalidade económica passa a ser automaticamente irracional e, como tal, não deve ser sequer democraticamente sufragada. Ou seja, uma coisa que de um ponto de vista econométrico se apresenta como ilógica torna-se logo, por si só, irracional e, portanto, não pode ir a votos. É o expoente máximo da tecnocracia. O sonho daqueles que consideram que a política deve assentar única e exclusivamente em technicalities financeiras.

Há exemplos gritantes a este respeito. Posso dar dois. O primeiro é o caso Grego. Em Dezembro, a Grécia convoca eleições antecipadas e, desde logo, se percebe que há um “risco” grande de o Syriza ganhar. Como o Syriza defende uma reestruturação dívida e/ou uma eventual saída do Euro (agora mais moderadamente, mas chegou a colocar isso em cima da mesa) – e isso poderia lançar milhares no desemprego, iria trazer uma inflação galopante, uma desvalorização brutal da moeda, etc. – o FMI desde logo corta o financiamento ao país até ver “esclarecida” a sua posição oficial. Ou seja, como não tem lógica que os Gregos queiram viver pior, o melhor seria que nem houvesse eleições. “Mas que coisa é essa agora de o povo grego querer um partido assim no Poder?” – ecoa nos corredores da Comissão Europeia. Dá-me vontade de perguntar: mas e se os Gregos quiserem viver pior? Por outras palavras, se quiserem viver pior economicamente, mas com uma redobrada dignidade, liberdade e independência? Eu sou da opinião que uma saída do Euro pode ter consequências dramáticas, mas que temos nós com isso? Os Gregos já não podem decidir por si, sem isso acarretar sanções, reprimendas, ameaças e cortes de financiamento?

Um segundo exemplo é o discurso de Cavaco Silva no virar do ano. Cavaco, no seu tom e estilo, veio a terreiro defender que os partidos se deviam entender antes das eleições de 2015. Que isso era crucial para o bom funcionamento do país. Para o bom funcionamento da economia. Entenda-se, aqui, que os partidos de Cavaco são PS e PSD – com a bengala CDS. Uma vez mais, o que se está aqui a ensaiar é um esvaziamento do sufrágio democrático. Como quem diz “vamos lá combinar tudo antes das eleições que é para não termos nenhuma surpresa e minimizarmos a importância disto o melhor que podemos”. Cavaco, enquanto Presidente, e sem sequer se aperceber, faz algo gravíssimo: esvazia as eleições. Uma outra vez, o melhor era nem as haver. O desejo de Cavaco era o de que as eleições, concebidas em democracia como um momento de renovação e de reflexão, passassem a ser uma mera technicality de concertação. Arrisco-me mesmo a dizer que o ideal seria ficarmos aqui durante 20 ou 30 anos sem eleições – ou com eleições cujos resultados fossem previamente combinados – até resolvermos os problemas do país. Caso contrário, ainda há um resultado inesperado, e os mercados agitam-se, e estamos tramados.

Eu digo antes: eles que se agitem.