LGBTQAfobia na saúde

Hoje celebrou-se o Dia Internacional Contra a Homofobia, Lesbofobia e Transfobia. Bem, alguns celebraram. Outros ainda não conseguem celebrar estas coisas. Alguns acham que é inútil, outros que é errado. Alguns acham que o que é errada é a própria questão da orientação sexual. Uns porque acham que tudo o que não é heterossexual é anomalia e doença, outros porque ainda acham que é uma opção e que portanto só por arrogância ou perversão alguém pode escolher ser assim ou assado e com isso magoar-se e magoar os que esperavam de si algo “normal”.

Portanto recomeço, hoje alguns de nós celebrámos o dia em que se pretende mostrar uma união entre os povos na luta contra a discriminação na orientação sexual e identidade de género. Como trabalho em saúde, contexto no qual esta questão tem particularidades relevantes, e depois de chamado à atenção pelo texto da Agência Europeia dos Direitos Fundamentais, ocorreu-me escrever sobre o assunto. Por um lado, porque no meio de tanta desatualização de que os médicos, enfermeiros, psicólogos e outros profissionais sofrem, parece que ainda há espaço para pessoas que vivem no medievalismo de considerar a homossexualidade doença. Por outro lado, porque a discriminação na saúde não só reflete como propaga um preconceito profundo e é um agente ativo do sofrimento de pessoas destes grupos.

Quanto ao primeiro ponto, não há muito a dizer. Já é mais que claro que as organizações responsáveis não consideram estas questões do domínio da patologia. Esse erro crasso e histórico já foi em grande parte revogado. Pelo menos nos papéis.

Quanto ao segundo, já não é tão simples. E infelizmente o segundo influencia o primeiro. Por um lado, as crenças do profissional de saúde, ainda que não devam, conseguem sempre influenciar a sua postura, a sua conversa, a sua interação. Por outro, podem fazê-lo muito mais resistente à mudança, por exemplo na questão de “acreditar” que a homossexualidade “afinal” não é doença. É ainda relevante pensar nos profissionais de saúde como líderes de opinião e conhecimento nas suas comunidades. Quando são eles a presumir certas normalidades, essa ideia é transmitida ou reforçada nos seus utentes/doentes. Para além disto, o comportamento discriminatório por parte do profissional tem o potencial de ter um impacto especial na vítima. É demasiadas vezes feita referência à discriminação nos cuidados de saúde como potencial confundidor nos diagnósticos, por exemplo pela presunção da presença ou ausência de determinados comportamentos sexuais. A história do VIH deixou-nos, naturalmente, traumatizados. Mas com este texto pretendo chamar à atenção a uma vertente talvez mais simples mas também muito mais frequente e generalizada. Como médico de família, a simples pergunta “ tens namorada?” – que é uma ponte fácil para abordar o tema da sexualidade na consulta com o adolescente – pode não só estragar a relação de confiança com o meu utente rapaz homossexual, como aumentar o seu sofrimento, um potencial sentimento de insegurança, de anomalia, de culpa, de incapacidade de aceitação, e diminuir consideravelmente a probabilidade de ele recorrer à minha consulta quando a questão for a sexualidade. E se eu, que me considero informado e preocupado com esta questão, me deixo por vezes cair nesta armadilha da educação heteronormativa, o que não será o habitual nas consultas e contactos com profissionais com mentes “menos abertas”? A resposta a esta pergunta já existe em vários inquéritos feitos a profissionais de saúde e a utentes. É péssimo.

Os profissionais de saúde são, assim, uma população em que é importante investir particularmente se queremos evitar sofrimento e acelerar a eliminação do preconceito na sociedade. O problema põe-se, então, no “como”. Como chegar a estas pessoas e mudar a sua postura? Não resultou ter a OMS e a UE a declarar que a homossexualidade não é doença, que os países deviam deixar de exigir diagnósticos de perturbações para oferecer cirurgias de reatribuição sexual ou reconhecer o género pretendido na identificação civil do indivíduo. Não chegaram os artigos científicos nem os programas na televisão. Não chegou o passar do tempo. Este é o ponto neste momento. E deve ser prioritário.

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A lente injusta e desumana de João Pedro Marques

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                              Juventude em Marcha, Pedro Costa, 2006 [Filme]

 João Pedro Marques assinou um artigo de opinião no qual é sintomática a primária desonestidade intelectual do autor a partir do momento em que este decide tornar operativa uma arma de estéril função retórica cujo alcance é nefasto. Refiro-me à discursividade digna de propaganda que subjaz à indignação pelo “politicamente correcto”. Ouve-se muita gente, dos mais variados espaços políticos mas não só, a transformar esta indignação numa forma de auto-elogio ou numa demonstração vaga de uma suposta frontalidade: uma espécie de “João sem medo”, em mau. Sempre que assisto ao uso depreciativo desta expressão só consigo ouvir barulho e portanto nada perceber. Considero-a uma função fática dos opinadores desesperados, dos bárbaros. É para mim o canto do cisne de quem mostra não querer conversar – renuir versões – e assim somente calar quem deles diverge, usando para isto uma expressão que não produz sentido analítico e que através do modo autoritário encerra consequentes discussões outras. Revela não só a fragilidade das estruturas argumentativa e ideológica, mas sobretudo uma mundividência egocêntrica que subsiste através da conservação de discursos tão acríticos quanto hegemónicos. Há um silenciamento evidente que é imposto e perpetuado através do repúdio daquilo que está por trás de tão oca expressão: muito antes de políticas, razões de ordem ética.

Dito isto, decidi ridicularizar algumas passagens da mal conseguida opinião.

O texto é mal encetado e isso é no entanto precioso por forma a podermos observar através da lente de JPM. Começamos logo com a fantasia em torno da definição de identidade por contraste. Não lhe passa pela cabeça que uma pessoa da “maioria” se possa sentir desconfortável com as descrições que lê no museu. Se calhar, JPM acha que eu teria de ser uma árvore para poder defender a floresta. De seguida, JPM considera que “preto, negro, esquimó, mouro, anão ou selvagem” são expressões “tidas”, note-se!, por desagradáveis ou discriminatórias. Isto é, algumas pessoas – nas quais JPM não se inclui necessariamente – acham que estes adjectivos não devem ser usados para descrever outras pessoas. Pois eu faço-lhe a delicadeza, JPM: estas palavras criam de facto desagrado e discriminação, pois são outra coisa maior: violentas, todas elas.

O segundo parágro abre com uma referência a um daqueles conceitos que consegue tudo e nada dizer: Ocidente. Pergunto: de Quem? De Onde? E, já agora, para Onde? Juro que não consigo perceber como é que alguém hipoteticamente informado consegue ainda fazer uso destes cadáveres conceptuais – fico cheio de vergonha alheia. É curioso também notar que JPM considera insólitas as atitudes geradas pela vontade de não ofender ninguém(?!). Já em jeito de processo autofágico, através de um exemplo que não reforça mas destrói o argumento, JPM recupera Winston Smith e respectivo trabalho no Ministério da Verdade, em 1984. JPM está justamente a fazer aquilo que critica através do exemplo que cita: a manutenção de uma verdade totalitária que oprime e subjuga através da recusa de fenómenos de inclusividade, inclusão que, de forma abjecta, chama politicamente correcto – a tal atitude gerada pela vontade de não ofender ninguém.

Outro episódio autofágico decorre em seguida, quando JPM escreve: “importa sublinhar – pois é muitas vezes esquecido – que, tal como as minorias étnicas, os europeus também são gente, também têm uma cultura a preservar, e também têm o direito de se sentir incomodados com a forma como a direcção de um museu lida com as obras do passado”. Como creio que JPM não se está a dirigir aos europeus de Quinhentos, então concordo com o escreve, pois não faltam hoje europeus que podem ser descritos com todas aquelas palavras tidas por desagradáveis e discriminatórias. Ou JPM acha que esses europeus não são de raça europeia?

No penúltimo parágrafo voltamos a encontrar aquela ideia acima referida sobre a definição da identidade por contraste, agora reforçada pelos europeus do Século XXI. Outra vez, JPM considera que o museu deve somente explicações aos “preto, negro, esquimó, mouro, anão ou selvagem” visto que eles – percepcionados através de uma mundividência essencialista e racista – é que se podem “ofender” com o discurso adoptado pelo museu. Já a segunda metade deste parágrafo é regada por uma doçura colonial em jeito nostálgico. Note-se a modalização melíflua: “quem foi humilhado foi o menino escravo que está representado naquele quadro. Ou naquele outro”. Mais parece uma canção de embalar de alguém que pousa a mão sobre o ombro de outrém enquanto de dedo em riste, apontando para os vários quadros, diz: “para que é que te estás a queixar se não és tu?!”. E termina com o recurso ao decreto histórico: a escravatura – essa maçada – acabou, logo, já não há problemas raciais, já não há formas de racismo latentes, já não há conservação de lógicas e discursos de poder alimentados ao longo de Séculos pela cultura e acção europeias, etc. É inacreditável como este artigo de opinião consegue colocar tudo isto em evidência e deste modo auto-destruir-se uma vez mais.

Na última parte do artigo, JPM decide retomar o labor de Winston Smith e lutar furiosamente contra os apologistas do politicamente correcto e contra aquilo que considera ser o adultério da verdade histórica (lembremo-nos do Ministério para o qual Smith trabalhava). Se existe uma verdade histórica, então eu quero conhecer a da “Jovem Negra” que está no Rijksmuseum, mas contada por ela.

Só mais uma coisa: politicamente correcta é a publicação desta sua opinião, João Pedro Marques. Eu pediria desculpa a mim próprio.

 

O Pirata Incomum

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   Jean-Baptiste-Siméon Chardin, 1734,  Le Philosophe lisant

O Jornal de Notícias publicou um artigo sobre “a derradeira forma de pirataria”, criada por Peter Sunde, o fundador do Pirate Bay. Kopimashin é uma instalação artística e tem como objectivo fazer cem cópias por segundo da canção “Crazy”, de Gnarls Barkley, enquanto ao mesmo tempo contabiliza o consequente e hipotético prejuízo criado à indústria musical (estimado em 9 milhões de euros, diários).

Saltam à vista as várias interrogações que Kopimashin coloca e repousam elas sobre: a noção de pirataria; a natureza legal do download; o prejuízo pelos descarregamentos criado; a relação que estabelecemos com aquilo que é virtual; entre outros. Quero reter-me no último ponto e e perguntar: quem é que consome as infinitas cópias de “Crazy”?

A referida canção abre com uma estrofe que assim termina: “[e]ven your emotions had an echo/ [i]n so much space” e que está claramente a dialogar com a vocação sem terra à vista de Kopimashin, criadora do maior número de cópias feito. Partindo do princípio de que o espectro emocional de uma realidade virtual, a existir, mimetiza o do humano, são afinal emoções humanas que ocupam os espaços outros, além humanos, sendo o eco a única coisa que criam: num movimento eterno e espelhado: de si, para si – ou seja, nada as reconhece. Então por que razão antropomorfizamos o download?

Se as cópias da instalação de Sunde não criam prejuízo real às empresas que dizem ter prejuízo por causa da pirataria, conservando virtualmente a mesma forma das cópias que são encaradas como avistamentos de piratas, então o que Kopimashin coloca em causa é a valoração do acto de consumo. A minha cópia é igual àquelas que são criadas pela instalação, mas vale mais, porque posso ouvir e portanto consumir. Lembrei-me de George Steiner que, a propósito da pintura de Chardin que ilustra esta entrada, escreveu em “The uncommon reader” (1996, No Passion Spent) sobre a leitura como experiência, e de como a literatura só existe através do fenómeno relacional que é a leitura (ou a audição, no caso das tradições orais). Se um livro fechado é uma história por contar, uma canção copiada é uma acção por vender?

Os problemas criados pelo mundo virtual merecem e devem ser discutidos, exercício que só terá bons resultados se for feito através de um prisma tão disruptivo quanto o da origem dos problemas, sobretudo porque o mundo é hoje mais virtual do que o mundo. Kopimashin já está a fazer esse trabalho, incansavelmente.

Crueldade institucional

Soube ontem que estaria para ser libertado o último dos “Três de Angola”, Albert Woodfox. O activista dos Panteras Negras – que lutavam pela melhoria das condições de vida dos prisioneiros na prisão de alta segurança no Luisiana, nos EUA – preso em 71 por assalto à mão armada, foi acusado pelo homicídio de um guarda prisional no contexto de um motim e esteve desde 72 – 43 anos – em solitária. Não escrevo este texto para analisar a probabilidade da sua culpa, ou sequer o sentido que faz um terceiro julgamento a que se arrisca, dado o Procurador-Geral ter intenção de voltar a levar o caso a julgamento, depois do juiz ter decretado a sua libertação imediata e aconselhado o Ministério Público a desistir (dada a impossibilidade de julgar o arguido com imparcialidade no Luisiana).
Escrevo este artigo para chamar à atenção para a crueldade com que esta pessoa foi tratada, independentemente da sua potencial culpa.
Por um lado, falamos de um indivíduo cujas duas condenações foram anuladas mas que, apesar disso, se manteve preso durante mais de 40 anos. A somar a isto, a sua libertação “imediata” acaba de ser adiada até sexta-feira e há a possibilidade de se manter preso sem culpa provada novamente, à espera do suposto terceiro julgamento. Ou seja, temos um suspeito que já cumpriu quatro décadas de prisão. Não sei qual seria a sua pena pelo crime por que foi de facto condenado – o assalto à mão armada – mas estou certo que nem de longe teria qualquer aproximação a isto.
Por outro lado, lembro que esta pessoa passou estes 43 anos em solitária. Que justificação poderá haver para tal coisa, que não a vingança das autoridades, seja pelo suposto homicídio seja pela exposição dos maus tratos aos prisioneiros? Têm medo que seja violento para outros presos? Não. Têm medo que fuja? Que organize motins? Eu diria que é para isso que há guardas prisionais. Então porque raio se sujeita um ser humano a uma situação de isolamento total, 23 a 24 horas por dia, num espaço de 1,82 metros por 2,70 metros (segundo outro dos Panteras, anteriormente libertado)?

Crueldade. Totalmente inaceitável, mas institucionalizada, ao ponto de isto poder ocorrer ao longo de décadas e de poder ser mantido mesmo após anulação de penas por tribunais de instâncias superiores. O tema das condições de vida dos presos ainda é demasiado tabu. Este caso ilustra como é tão importante que deixe de o ser, em todo o mundo.

(mais na notícia do Público, aqui)

Redistribuição, precisa-se!

Os dados recentemente publicados pelo INE sobre os níveis de pobreza e desigualdade confirmam o que já se vinha suspeitando: três anos de uma intensa política de austeridade levaram a que Portugal recuasse uma década. A percentagem da população a viver abaixo da linha de pobreza voltou a espreitar os 20% e a afetar um quarto dos jovens e crianças. Se os valores tiverem como referência a linha de pobreza de 2009, verifica-se que praticamente um terço da população jovem e infantil vive em famílias pobres. No que diz respeito à desigualdade, os valores retomam os números de 2005, por exemplo, neste ano o rácio entre os 10% mais ricos e os 10% mais pobres cifrava-se nos 11.9, atualmente corresponde a 11.1. Depois de anos continuados em que o país viu o seu produto mirrar consecutivamente, assiste agora à comprovação de que o seu nível de bem-estar e de coesão social decresceu decisivamente. Os efeitos dos cortes nos salários, nas pensões e nas prestações sociais, associado ao aumento do desemprego para valores nunca vistos, provocaram um impacto muito profundo nas estruturas sociais da sociedade portuguesa: esta não só conheceu um empobrecimento e uma vulnerabilização profundas, como uma maior polarização social entre as classes mais privilegiadas e as restantes.

Face a estas tendências regressivas, deverá ser equacionada uma resposta política corajosa, que, pela primeira vez, aplique um conjunto de medidas diversificadas que combatam em simultâneo a pobreza e a desigualdade. Nenhum governo português aplicou uma verdadeira política redistributiva definida a partir de um mix de medidas que enfrentassem de vez estes problemas. Na verdade, o que tivemos no passado foi o desenvolvimento de importantes instrumentos de combate à pobreza (RSI, CSI), mas que não se fizeram acompanhar de políticas de ataque à desigualdade.

Como demostram as linhas programáticas apresentadas pela candidatura cidadã Tempo de Avançar, é necessário conceber um conjunto diversificado de políticas que combatam em várias frentes estes flagelos sociais. Neste sentido, é importante equacionar uma política fiscal mais progressiva sobre todas as fontes rendimento (trabalho, capital e património). Uma política redistributiva que incida simultaneamente no aumento do salário mínimo, na diminuição da dispersão do leque salarial (aplicando, por exemplo, um rácio máximo de desigualdade) e no decréscimo semanal das horas de trabalho. Uma política que alargue os apoios sociais e estenda o princípio do complemento de rendimentos a famílias pobres com dependentes a cargo. Uma política que a prazo equacione a possibilidade de aplicação de um rendimento básico tendencialmente incondicional. Será necessário muita determinação para empreender este programa igualitário em Portugal. Muitas destas propostas não são de simples execução e dependem de um trabalho técnico muito aprimorado. No entanto, mais relevante neste momento é estipular as orientações fundamentais pelas quais se deverão trilhar os passos de uma social-democracia avançada.

Sem meias palavras, sem meios direitos

Mais uma vez se discute na Assembleia da República a possibilidade de legalizar a adopção por casais do mesmo sexo. Infelizmente, por medo, por incapacidade, por estratégia ou por loucura, mostra-se mais uma vez difícil colocar a questão da forma que deve ser colocada. É introduzida como sendo uma alteração sustentada pelo superior interesse da criança. E é, de facto. Mas ninguém duvida que a criança está melhor com uma família do que numa situação de acolhimento em instituição. Responde-se que não, que afinal o que está por trás desta insistência é “apenas” a luta contra a desigualdade e discriminação dos casais homossexuais, a quem se quer dar o “direito de adoptar”, como se com isto se atropelasse o interesse da criança. É infeliz, no entanto, que o debate de seguida se centre muitas vezes nesta situação como “o menos mau”: é menos mau estar com famílias homossexuais do que em instituições.

As inqualificáveis intervenções de Teresa Anjinho, pelo CDS, e de Luís Montenegro, pelo PSD, no debate que decorreu hoje na AR só contribuem, intencionalmente, para mais confusão. Interessa-lhes tanto arranjar forma de não se aprovar a adopção por casais homossexuais que preferem fugir à discussão concreta e à análise da evidência que clarificam a tomada de decisão. Teresa Anjinho, para além da manobra habitual de acusar os proponentes de estarem preocupados com os direitos dos homossexuais e não com as crianças, ainda atira para o ar uma suposta enorme controvérsia neste tema (supõe-se, do ponto de vista científico?) que deve impedir a aprovação desta proposta, porque, invertendo o ónus, diz procurar (e, talvez por incompetência, não conseguir encontrar) evidência que prove que as crianças não serão prejudicadas por serem adoptadas por casais do mesmo sexo. Luís Montenegro, que não surpreende, desvia para o facto de já se ter discutido o assunto várias vezes, como se isto pudesse ser algum limite ou tivesse algum interesse para a aprovação ou não da proposta (e ainda aproveita para se vangloriar da liberdade de voto que o PSD dá à sua bancada – haja tempo para bom humor na AR). Duas tristes intervenções que importa referir para dispersar a névoa que elas criam e expor as questões reais que pretendem esconder.

Tentando, assim, clarificar, esta proposta centra-se no seguinte: no conjunto dos vários princípios que a nossa república defende, havendo um procedimento legal de adopção – estabelecendo assim que é no superior interesse da criança ser adoptada em vez de acolhida numa instituição – basta apenas uma regulamentação que defina quais são as famílias capazes de adoptar. A introdução de um outro limite legal, para além dos que já existem na avaliação das famílias que se propõem a adoptar – neste caso a proibição a um certo tipo de casais – só pode ser justificada por um dado novo, ou seja, para podermos justificar que a nossa lei actual não permita às famílias homossexuais adoptar, temos que demonstrar evidência científica de que essa adopção seria prejudicial para a criança adoptada, cedendo portanto a questão da igualdade perante a maior importância do interesse da criança. Está aqui a resposta a toda esta questão: não há. Não há grande controvérsia científica, a evidência que existe mostra que os casais do mesmo sexo são tão capazes de oferecer uma família e sustentar um desenvolvimento feliz e harmonioso como os outros.

Assim sendo, é a nossa lei que está errada, porque não há qualquer sustentação para eliminar casais homossexuais a priori do processo de adopção. É a nossa lei que está contra o superior interesse da criança, ao impedir potenciais adopções, depois de ser reconhecido que uma família é melhor que uma instituição de acolhimento. E só se alguma vez se viesse a constatar que as crianças adoptadas por um tipo de casal fossem prejudicadas, só aí se poderia discutir uma limitação legal. Aprovar esta proposta é tão só uma correção da expressão legal de um conservadorismo moralista cuja pesada herança temos que combater ponto por ponto.

A diáspora e a sua representatividade (I)

Não é fácil estimar o número de portugueses emigrados. É lugar-comum dizer-se que há quinze milhões de portugueses – um terço dos quais emigrado – sendo que alguns apontam para números muito superiores, incluindo lusodescendentes até à terceira geração.  Estimativas das Nações Unidas apontavam, em 2013, para cerca de 2 milhões de portugueses emigrados, não incluindo os lusodescendentes, enquanto o Banco Mundial aponta para um valor ligeiramente mais elevado (2,2 milhões). Independentemente da fonte utilizada, os números são elevadíssimos e, segundo o Relatório da Emigração de 2013 da Secretaria de Estado das Comunidades (SEC), fazem de Portugal o 12º país do mundo com o maior número de emigrantes por total de população. Este relatório da SEC apresenta ainda outros dados de interesse, como o facto de 80 a 85% da emigração actual ter como destino outro país europeu (com o Reino Unido à cabeça) e o total das remessas em 2012, que ascendeu a 1,8% do PIB nacional.

Sendo inegável a expressividade dos números da diáspora portuguesa, a sua representatividade política resume-se a quatro deputados na Assembleia da República (AR) – dois eleitos pelos emigrantes nos países europeus e dois pelos emigrantes fora da Europa. Olhando para a emigração europeia, apenas uma ínfima parte destes cidadãos se encontra recenseada para votar nas eleições portuguesas. Segundo o Ministério da Administração Interna, em 2011, o número de portugueses recenseado nos diferentes consulados europeus era de apenas 75 053, o que corresponde a menos de 4% do total dos portugueses emigrados na Europa. Mais, apesar do número reduzido de recenseados, o número de votantes foi de pouco mais de 18 mil, representando menos de 25% do total de eleitores.

Fixando-nos na diáspora portuguesa na Europa e utilizando os números das últimas eleições legislativas, verifica-se uma situação quase antagónica quanto à sua representatividade política. Por um lado, atendendo ao número de cidadãos, o círculo eleitoral da Europa seria facilmente o terceiro maior – após os círculos de Lisboa e Porto, ambos com mais de 1 milhão e 500 mil eleitores, surge Braga com 775 mil – o que representaria mais de 20 deputados na AR. Por outro, quando considerado o número de recenseados nos vários consulados europeus, o círculo eleitoral da Europa, com pouco mais de 75 mil eleitores, é o mais pequeno, atrás de Portalegre, que conta com mais de 106 mil eleitores. Se considerarmos o número de votantes, apenas o círculo eleitoral dos emigrantes fora da Europa regista um valor inferior, sendo que Portalegre, o círculo que registou os valores mais baixos em Portugal, teve mais do triplo dos votantes que o círculo Europa. Assim, se considerarmos apenas o número de portugueses recenseados e votantes nos consulados europeus, parece até haver uma sobre-representação dos mesmos. Existe portanto um desfasamento muito grande entre o número total de cidadãos emigrados e o número dos que podem exercer o seu direito de voto. Importa pois atentar nas causas que causam este desfasamento, de modo a corrigi-las.

Liberdades e ofensas

Desde o horrível atentado em que 12 pessoas foram executadas por aquelas criaturas que decidiram que sátira, ironia e desenhos num jornal são motivos para matar que se entrou numa discussão que faz muito pouco sentido. Desde o texto ao estilo “puseram-se a jeito” do Gustavo Santos às tiradas assustadoras da Ana Gomes no Twitter, já comentadas e bem aqui e aqui que me farto de ouvir e ler opiniões que roçam este absurdo (até o Papa de que as pessoas até têm gostado, pelos vistos). Não me vou por aqui com grandes considerações dignas de uma coluna de opinião. Quero só lembrar uns conceitos básicos que nos permitiriam evitar cair nestas tolices.

1 – A liberdade de expressão tem um nome muito intuitivo. Podemos dizer o que nos der na real gana. Queremos poder dizer o que nos der na real gana. A liberdade de expressão não quer dizer que não haja resposta a algo que se diga, mas quer dizer que não há barreiras iniciais ou consequências que o impossibilitem. Mas, claro, como a sociedade é mais do que um, nós temos, e bem, alguns limites ao que se pode dizer. São, claro, com consequências conhecidas a priori mas aplicadas a posteriori, não é novidade para ninguém falar-se da difamação ou do apelo à violência.

2 – Nós queremos uma sociedade em que cada pessoa possa acreditar no que acredita sem que isso signifique que seja limitada ou discriminada pelos outros. Queremos que essa pessoa se possa associar a quem comunga das suas crenças e queremos, dentro dos limites da ética e da lei, que possam definir os seus próprios códigos e regras. Mas a obrigação da sociedade em assegurar liberdade religiosa fica-se por aí. Ninguém deve nada às religiões. As suas determinações, as suas regras, os seus ditames e as suas blasfémias são de aplicação interna e absolutamente irrelevantes para o resto do mundo, excepto, claro, para a compreensão de quem nos rodeia.

Portanto, fazer desenhos com o Maomé é blasfémia? Para um crente, sim, para qualquer outra pessoa, é só um desenho. Gozar com fundamentalistas religiosos é criticável? Então não é, especialmente pelos próprios, o gozo está sempre sujeito a crítica e passeia muitas vezes nos limites do que cada pessoa considera bom gosto. Gozar com fundamentalistas religiosos é útil? Claro que é, usar a ironia para demonstrar a falha lógica e humana dos “argumentos” que sustentam opiniões e acções radicais perigosas é muito importante e tem um impacto que as discussões no final do telejornal simplesmente não conseguem. Mas o que raio é que isto interessa? Nada. Para justificações e atribuições de culpa, nada disto interessa. Pouco me importa se o desenho na capa do jornal tem Maomé aos beijos com Cristo, se tem a Branca de Neve a fazer um bolo de chocolate ao Rezingão.

Defender a liberdade de expressão significa que as pessoas podem expressar-se, que podem ser amadas ou odiadas por isso, mas continuam a poder expressar-se. Em última instância, isso implica defender quem se expressa livremente de quem quer limitá-lo. No caso, significa até às últimas consequências defender o direito de quem trabalhava no Charlie Hebdo de fazer o que fazia. Havia desenhos que eu não gostava? Vários. Havia piadas que mau gosto? Eu acho que sim. Os líderes religiosos ou os crentes têm alguma coisa a ver com o que se publica ali, para além de terem uma opinião sobre isso? Não. 

Se quiséssemos – e não queremos, estou certo – limitar a possibilidade do Charlie ter representações do Maomé porque numa religião são tabu, teríamos também que limitar as referências ao deus dos cristãos, porque é pecado dizer o seu nome em vão. Por outro lado, teríamos que proibir os padres de dizer na missa que os pecadores vão para o inferno sofrer tormentas eternas – isso seria um insulto muito mais grave a todo o mundo não cristão. Teríamos que impedir tanto do que está nas escrituras sagradas das religiões que mais valia proibir os livros completamente. Teríamos, levando ao absurdo, que parar de nos referir uns aos outros, teríamos todos que olhar para quem difere de nós como se houvesse um enorme campo de forças que não podemos atravessar.

Se quisermos – e estou certo que muitos de nós querem – um mundo integrado, em que haja uma civilização que inclui todos os seres humanos, em que haja mais compreensão dentro da variedade, em que as diferenças não signifiquem paredes, em que as crenças ou costumes deixem de ser barreiras, então temos mais é que poder falar delas, gostar ou detestar, elogiar ou criticar e sim, gozar.

Mas não estou eu, com tudo isto, a incorrer no mesmo que critico? Não. Por um lado, porque acho que os “gustavos” têm tanto direito de dizer o que têm dito como eu de os criticar. Por outro, porque eu nunca, de nenhuma maneira, admitiria sequer entrar no ridículo discurso de culpabilização das vítimas. Quando alguém decide fazer justiça pelas próprias mãos, independentemente do seu código pessoal, do que defina para si mesmo como justiça, matando os que considera culpados, o único responsável é ele mesmo. O único culpado é ele mesmo. O monstro é ele mesmo. As vítimas não se puseram a jeito, por mais que o monstro tivesse avisado antes que se eles fizessem aquilo os matava, as vítimas viveram como devem poder viver e morreram porque umas bestas decidiram matá-los. Não há nenhuma outra interpretação para isto.

Recuperar o Espaço Público

Os últimos 40 anos em Portugal caracterizaram-se por uma expansão urbana sem precedentes e consequente dispersão territorial. A forma como se proporcionou todo este processo está amplamente estudada e não pretendo fazer aqui nenhuma análise deste processo complexo, mas sim fazer uma avaliação de algumas das suas consequências.

Construiu-se muito em Portugal durante esse período. Demasiado, é certo. Com isso fizemos habitação de sobra, escolas, hospitais e outros equipamentos públicos, mas falhámos redondamente em traduzir esse crescimento no desenvolvimento de melhores cidades, com melhor integração e coesão ambiental e social, com o planeamento adequado. Permitimos ingenuamente que o impulso privado controlasse o processo, cedendo instrumentos para o efeito, como as operações de loteamento, e fomos permitindo um crescimento retalhado que se traduziu numa cidade fragmentada com espaço público de má qualidade.

Mapa

Sei que corro o risco de me acusarem de ser demasiado literal na apreciação do termo espaço público que vai além do espaço meramente físico, mas o que me interessa recuperar é a relação entre esse lado palpável e o espaço institucional e fluído que o André Barata refere no seu post anterior. Com a excepção dos centros históricos, que beneficiam do efeito turismo para a sua reabilitação, o espaço que sobra só para nós, degradado e disperso, só pode contribuir para uma deterioração da percepção que o cidadão tem em relação ao tal espaço público imaterial dos valores democráticos.

Ao mesmo tempo, o sector da construção que ruiu com a crise, encabeça as estatísticas da emigração e sai do país levando o conhecimento adquirido tão fundamental para a recuperação do nosso espaço comum. A renovação urbana, concentrada na oportunidade do edificado decadente dos centros históricos, tem sido apontada como bóia de salvação para o sector, mas existe muito mais trabalho para ser desenvolvido, principalmente fora dos centros históricos. Este investimento não poderá depender apenas do sector privado, mas podia ser fruto de um esforço conjunto entre este, o público e o terceiro sector, caso a caso. Alargando o espectro da renovação urbana ao restante território, poderíamos salvar mais emprego na construção e dar ao mesmo tempo a oportunidade ao sector de corrigir os erros que foi fazendo nas últimas décadas, começando pela rua e, quem sabe, acabando numa reestruturação profunda das nossas dispersas áreas urbanas e metropolitanas.

Um espaço público fluído, integrado e confortável é essencial para o exercício da cidadania, não apenas como último reduto do protesto e combate democrático, mas como forma de reabilitar a nossa sensação de pertença e propriedade ao que é colectivo. É urgente recuperar a rua, o prazer de a ocupar como local de encontro e permanência, para revalorizarmos a importância do nosso território comum que nos últimos anos tanto tem sofrido de abandono.

Autor: Eduardo Viana

Próxima estação: Esperança

Quando se passa o ano fora do país, passar uns dias junto da família e dos amigos ganha um significado especial. Se num passado mais ou menos recente esse “luxo” existia apenas durante o querido mês de Agosto, a verdade é que agora, recorrendo a uma complicada engenharia na escolha das datas de modo a evitar voos a preços absurdos, é mais fácil voltar durante uns dias a Portugal. Assim, como muitos outros portugueses emigrados que a tal se podem permitir, passei estes dias em Portugal, junto de família e amigos, muitos deles também emigrados, e em todos o estado de espírito era o mesmo – descrença e desesperança.

Apanhar um voo para Portugal nesta altura do ano é uma experiência estranha, onde muitos sentimentos se misturam. Os aeroportos acabam por se tornar num verdadeiro laboratório social, juntando histórias e experiências, sonhos e desilusões, angústias e felicidades. São também um retrato do nosso falhanço enquanto país nestes últimos anos, que culminou com a saída de mais de trezentos mil portugueses – cerca de 3%(!) da população portuguesa – nos últimos três anos, a grande maioria dos quais por não ter qualquer perspectiva de futuro em Portugal.

Sentado no aeroporto, pus-me a olhar e a escutar as pessoas à minha volta. À minha esquerda, um casal jovem, com uma filha ainda bebé que, pelo discurso, percebi serem funcionários das instituições europeias. À minha frente, um casal de idade, juntamente com a filha de meia-idade, aos quais não ouvi uma única palavra. À minha direita, um grupo de 15 jovens, todos com cerca de 30 anos, enfermeiros, seguramente transmontanos, que, entre cada história sobre a vida hospitalar, suspiravam por um qualquer prato tradicional. Atrás de mim, estava um daqueles grupos improváveis que se formam quando existe um objectivo em comum que obriga as pessoas a juntarem-se num mesmo sítio à espera. Embora não os pudesse ver, o grupo era constituído por um casal jovem de emigrantes de segunda geração com um filho recém-nascido, um casal emigrado há mais de 30 anos e uma senhora que contou a sua história de vida e me deixou a pensar nela toda a viagem. Não sei que idade teria mas, segundo ela, tinha já netos. Tinha e continuaria a ter – repetiu várias vezes que o patrão português lhe disse que sempre que quisesse voltar seria bem-vinda – um emprego fixo em Portugal que, no entanto, não bastava para pagar os custos que a sua filha mais nova tinha sendo estudante universitária. Assim, com mais de 60 anos, vira-se obrigada a deixar toda uma vida para trás, tornando-se governanta num país estrangeiro, de modo a permitir que a filha prosseguisse com os estudos.

Quantas histórias haverão iguais a esta? Quantos, jovens ou menos jovens, com ou sem curso superior, não foram obrigados – assim mesmo, obrigados – a deixar Portugal nos últimos anos? O que diz tudo isto sobre nós, enquanto país? Como poderemos, cidadãos que somos, continuar a encarar este facto como uma fatalidade? Este estado de espírito fatalista é particularmente acentuado nos que se mantiveram em Portugal. Posso contar com os dedos de uma mão as pessoas de entre os meus familiares e amigos que me dizem para voltar. Todos os outros me dizem para me deixar ficar por Bruxelas, “que isto aqui não tem volta que se lhe dê”. É esse desânimo, mais que tudo o resto, que me custa aceitar. Podem tirar-nos tudo, mas não deveriam poder tirar-nos a vontade. Para tal, é preciso que todos, emigrantes ou não, partam numa viagem que tenha um único destino: a Esperança.