O mal menor

Há números que são mais eficazes que qualquer texto a dar ideia da dimensão de um conflito. Na Síria, desde o início da guerra civil, doze porcento da população morreu ou ficou ferida. Paremos um instante para digerir este valor. Doze porcento, mais do que uma a cada dez pessoas. Quanto a mortos, o número já ultrapassou o meio milhão. Como termo de comparação, as estimativas mais elevadas sobre o número de mortes na guerra dos Balcãs é de 250 mil. Metade. Números, uma vez mais, mostram claramente quem é o responsável pela grande maioria das vítimas: o ditador Al-Assad. Como pode então haver um tão grande silêncio, uma tão grande complacência em relação ao ditador que não aceita sequer que se discuta a sua saída?

Com um artigo forte e um título provocador – “Porque não se manifestam os pacifistas do ocidente contra Assad?” – a jornalista italiana Francesca Borri coloca-nos, enquanto sociedade, várias questões. Por que razão não nos mobilizamos contra uma ditadura que tantas vítimas tem provocado do mesmo modo que nos manifestamos noutras ocasiões? A resposta, conclui, parece ser o facto de Assad ser laico o que, aos nossos olhos, permitiria a aceitação de todo o tipo de crimes, desde que impedindo os islamitas de tomar o poder. Apesar de sanguinário, surge, aos olhos de muitos democratas, como o mal menor. Se em relação à Jugoslávia já se podiam seguir os eventos diariamente, no que toca à Síria há um acompanhamento ao instante, graças às redes sociais. Não é certamente pela falta de conhecimento dos crimes cometidos pelo regime que preferimos Assad a uma alternativa.

Após um apoio inicial aos rebeldes, maioritariamente laicos, que inicialmente se revoltaram contra o regime, o crescimento e o controlo de algumas áreas do país por parte de grupos islamitas, seguida da criação e ascensão do daesh, fizeram-nos ficar de pé atrás. Os exemplos vindos de outros países da Primavera Árabe, certamente não ajudaram. Se é verdade que em alguns meios a luta dos curdos, pela revolução dentro da revolução e pelo seu experimentalismo democrático, mantiveram a nossa atenção, a luta de grupos como o Exército Livre da Síria deixou de ter qualquer destaque à medida que foram perdendo força no país. Agora, os únicos países que parecem ter uma ideia clara para o que querem do país – Irão, Rússia, Arábia Saudita, Turquia – estão preocupados com tudo menos com a democracia e a vida dos cidadãos sírios.

Se, como União Europeia, tivéssemos, desde a primeira hora, apoiado uma alternativa à ditadura de Assad – e essa oportunidade existiu durante os primeiros meses após o levantamento – o cenário poderia ser diferente. Se tivéssemos ajudado e preparado a juventude síria que agora ou fica no país para morrer ou arrisca a sua vida fugindo, não estaríamos certamente a defender o mal menor. Como nota Borri, parece que “somos apenas pela democracia se os seus cidadãos forem como nós”. E não pode ser assim. A defesa pela democracia tem que ser intransigente e incondicional. Se tenho uma alternativa a Assad a propor? Infelizmente não. Mas não nos deixemos apanhar a defender o mal menor como a boa solução.

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Bons ventos e bons casamentos

Finda a segunda ronda de consulta aos partidos políticos espanhóis e dada a impossibilidade de encontrar uma maioria dos deputados que apoie a investidura de um novo governo, o rei Felipe VI viu-se obrigado a convocar novas eleições. A data já está marcada: 26 de Junho, mais de seis meses após a eleição inicial e três dias após o referendo sobre o Brexit. Os próximos meses, entre as questões da maior ou menor autonomia das diferentes regiões espanholas, da economia e do sempre elevado desemprego, serão pois decisivos na definição do futuro do país. Sendo de esperar, novamente, um resultado sem vencedor absoluto, espera-se um jogo onde todos terão que ceder.

É difícil fazer a comparação entre Portugal e Espanha, de tão diferentes que são as realidades políticas mas, apesar disso, uma coisa é certa: apenas um novo governo espanhol progressista poderá servir os interesses de uma frente europeia anti-austeridade e que ajude à construção de uma União Europeia mais democrática e igualitária. Se parece ter ficado claro que uma coligação que junte Ciudadanos e Podemos é impossível, é importante que os partidos de esquerda mantenham o diálogo e a abertura para uma coligação que, caso os resultados sejam favoráveis, permita a governação. Não é ainda claro quem saiu mais beneficiado ou mais prejudicado pelo facto de não se ter conseguido um acordo de governo mas caso se confirme a candidatura conjunta do Podemos (e os vários movimentos que lhe estão mais ou menos associados) e a Izquierda Unida, a possibilidade de uma maioria de esquerda no parlamento é bastante real.

Até há bem poucos meses, eram poucos os que em Portugal acreditavam num governo socialista apoiado pelos partidos à sua esquerda. Apesar disso, a “geringonça” ganhou vida e instituiu uma nova forma de governar. E os resultados positivos estão à vista, tanto a nível nacional como a nível internacional.

Para além da reposição salarial, da reposição dos feriados retirados pelo anterior governo, temos, após anos de seguidismo e baixo-orelhismo, um governo que assume as suas posições, independentemente de estas chocarem com a hegemónica perspectiva austeritária com epicentro em Berlim. Nesse sentido, é exemplar a comparação entre a reacção de Passos Coelho à vitória do Syriza na Grécia e a declaração anti-austeridade assinada por Costa e Tsipras há poucas semanas. Resta, é certo, um longo caminho a percorrer, mas serão poucos os que à esquerda e apesar de todas as limitações, prefeririam que este governo não tivesse visto a luz do dia. Da Grécia de Tsipras ao Reino Unido de Corbyn, passando por todos os movimentos transnacionais, este é o momento de lutar por uma Europa dos povos verdadeiramente democrática. Um passo nesse sentido pode ser dado em Espanha, bastando que invertam o nosso ditado e vejam que pelo menos ao nível de alianças políticas lhes chegam bons ventos e bons casamentos.

Por Deus, pela minha mãe, pelo meu cachorro, pela minha prima Andreia que ainda vai nascer…

Foto retirada do site Esfera Arquitetura.

Os deputados brasileiros e as deputadas brasileiras, demonstraram um aprofundado senso de irresponsabilidade e zombaram da cidadania brasileira ao colocar os cidadãos e as cidadãs em último plano, ou mesmo em plano nulo. Mostraram claramente que eles não estavam preocupados com o país, mas sim com eles próprios. Sem contar os consideráveis erros de ‘portugês’ em seus discursos. 

O dia 18 de abril de 2016 foi um dia lamentável para a democracia brasileira, não somente pela continuidade do processo de impeachment da presidente Dilma Roussef, mas porque demonstrou como os representantes democráticos não estão de todo à altura de suas funções.

Em 2014 fui estagiar brevemente com um deputado brasileiro na Câmara dos Deputados do Brasil e saí de lá com a convicção de que o deputado para o qual eu estava estagiando era um, de apenas uma dezena de deputados brasileiros, que entendiam de facto o que significa ser um representante popular e tinha preparação para tal cargo – atenção que a preparação para um cargo de deputado ou deputada, faz-se muito durante o mandato, de acordo com a curiosidade, empenho e boa vontade em aquisição de conhecimentos do eleito ou eleita. Os outros deixaram-me completamente incrédula sobre a ausência de conhecimento e vontade em se tornarem bons representantes democráticos. Eu vinha da minha experiência de assistente de um deputado europeu e quando me deparei com a realidade na Câmara dos Deputados, senti uma indignação substancial por constatar que a política brasileira estava a ser feita por pessoas ferozmente incultas, despreparadas e ignorantes, profundamente ignorantes. Deixei a Câmara e voltei a Portugal com a certeza de que se o Brasil estava ainda longe se tornar um grande país em matérias sociais, ecológicas, científicas, de direitos humanos, segurança, ou seja, avanços em áreas várias, era também por causa da representação fraca, muito fraca, fraquíssima dos deputados eleitos. E na votação do impeachment o mundo saboreou, incrédulo, essa visão que me revoltou em vários níveis.

Vamos por partes. Fazer uma declaração de voto é o mínimo, o básico que um político ou uma política necessita saber. As declarações de voto sobre o impeachment, centenas delas, foram baseadas em tudo, menos numa avaliação concreta sobre o processo de impeachment e a situação atual do Brasil. Centenas de deputados fizeram as declarações de voto em primeiro lugar por um Deus (que não fala), em segundo lugar pelos seus familiares – incluindo falecidos, ou seja, em nome da mãe, do cachorro, da sobrinha que ainda ia nascer, do amigo que morreu… Ou como fez o deputado Jair Bolsonaro que dedicou o seu voto ao Coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, um severo militar da ditadura de 1964-1985. Aproveitaram até para mandar beijos para a família, os filhos, os amigos e a esposa no show encomendado por Eduardo Cunha, o maior corrupto que lá estava e ainda com assento presidencial. Apenas cerca de meia centena de deputados questionaram o presidente da Câmara, que se houvesse realmente uma justiça válida no Brasil, já teria todos os processos contra ele apurados, afinal o que ele merecia era ter saído algemado da assembleia. Mas voltando às declarações de voto, os deputados brasileiros e as deputadas brasileiras, demonstraram um aprofundado senso de irresponsabilidade e zombaram da cidadania brasileira ao colocar os cidadãos e as cidadãs em último plano, ou mesmo em plano nulo. Mostraram claramente que eles não estavam preocupados com o país, mas sim com eles próprios. Sem contar os consideráveis erros de ‘portugês’ em seus discursos.

Eles sabiam que a comunidade internacional estaria em peso assistindo e ao invés de fazerem um bom trabalho – mesmo quem votasse a favor do impeachment, tinha a obrigação, enquanto representante popular do povo brasileiro, de demonstrar que os brasileiros não são tribais como muita gente pensa – mas ao invés disso optaram por fazer a pior atuação que um representante popular poderia fazer. Numa crónica escrita por María Martín, no jornal El País, vemos o mau serviço à democracia dos deputados e deputadas. A autora zomba da atuação dos e das representantes populares num texto que tem por título “Deus derruba a presidenta do Brasil”. Isto lembrou-me que quando fui visitar o plenário, em 2014, chamou-me a atenção um crucifixo pregado na parede, em cima da mesa que preside a assembleia. Achei absolutamente ridículo e revoltante porque o Brasil é um estado laico, contudo ontem ficou claro como a religião ainda interfere na evolução das mentalidades dos brasileiros, a começar por seus representantes que deveriam manter afastada qualquer interferência da religião na política. O que se manifesta na reforma mais difícil de ser fazer nos órgãos governamentais e democráticos porque a religião se transformou em política no Brasil. Não há qualquer pensamento progressista que consiga prevalecer numa sociedade política que atribui a responsabilidade dos seus atos em divindades. Isto é a maior forma de demonstração de que boa parte da política brasileira ainda se faz de uma maneira primitiva, digna da idade média. Fora a preocupação de zelar pelo nome do Brasil na comunidade internacional, eles deveriam obrigatoriamente terem tido uma preocupação, mínima que fosse, com os milhares de brasileiros e brasileiras que os estavam assistindo. Preocupação essa de passarem um bom exemplo, como membros do governo brasileiro, para os jovens, adultos e crianças. Até nisso falharam.

À parte das jocosas declarações de voto, os deputados demonstraram o poder que a corrupção tem no sistema partidário brasileiro e o quanto a disciplina de voto está vincada naquela casa democrática. O jornal americano The New York Times, no dia 14 deste mês, escreveu um artigo delatando que cerca de 60% dos deputados na Câmara estão envolvidos em escândalos judiciais. Além do artigo ter sido um bom serviço prestado à democracia e à justiça, o título é antes de tudo revelador: Dilma Rousseff Targeted in Brazil by Lawmakers Facing Scandals of Their OwnOu seja, obviamente aqueles mais de 300 deputados que votaram a favor do impeachment, possuem eles próprios um pacto com o diabo. O circo montado por Eduardo Cunha e sua quadrilha de criminosos, apenas demonstrou que não havia interesse em defender a dignidade do povo brasileiro, mas sim em defender a busca pelo poder, numa esfera sádica que perpetua a corrupção nos corpos democráticos.

Após a demonstração política do impeachment  não é sensato afirmar que o Brasil está num bom caminho e que o processo foi positivo por se tratar de uma invocação popular. Pessoas que acreditam nisso, ao meu ponto de vista, possuem uma grande falta de informação do que se passa no sistema democrático brasileiro e das pessoas que o compõem. Principalmente sobre as pessoas que o compõem. Em todas essas situações Dilma também é culpada sim, de uma coisa, de ter tido uma atitude soft desde de 2013 com essa corja que tramava, nem era sob suas costas, mas declaradamente contra ela. Ela escolheu ser uma presidente cordial e não cavou apenas a sua própria cova, mas também de todos os brasileiros e brasileiras e até do próprio Deus. Sim, porque nessa nova realidade brasileira nietzscheana, Deus está morto, sempre esteve e sempre estará enquanto for gente como aquela a proferir o seu nome e a convidá-lo para fazer política num estado laico.

A próxima votação que nos deixará perplexos será provavelmente a votação pelo porte de armas de civis. Não me espanta nada que os dinossauros políticos instaurados no Brasil e pior, eleitos democraticamente, decidam a favor dessa balela. Afinal poderão eles mesmos andar legalmente armados e chacinarem-se uns aos outros em pleno plenário. E claro, como a justiça no Brasil é tendenciosa, dependendo da conta bancária e dos potenciais favores conseguidos, sairão tão ilesos como se estivessem a atirar confetes naquela casa carnavalesca que é a Câmara dos Deputados do Brasil – lá o carnaval é o ano todo. Tenham vergonha!

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(Nota: Em Lisboa um grupo de brasileiros, incluindo brasileiros que vieram estudar em Portugal com o apoio do governo brasileiro, fundaram o Coletivo Andorinha: Frente Democrática Brasileira de Lisboa. Podem conhecer mais sobre a iniciativa através da sua página de Facebook.)

Sim, é golpe

Confirmou-se ontem a aprovação por parte da Câmara dos Deputados brasileira da abertura do processo de “impeachment” contra a presidenta Dilma Rousseff. Este processo deverá agora ser confirmado pelo Senado o que, a confirmar-se, levará à suspensão de Dilma até 180 dias para fins de investigação. Apesar de todo o ruído à volta deste caso, as razões alegadas para o “impeachment” são, claramente, insuficientes e sem base legal. Isto parece interessar pouco àqueles que se querem vir livres de Dilma e do PT a todo o custo, desrespeitando de forma aberta o voto de milhões de brasileiros, bem como a própria democracia. “Impeachment” sem crime é pois um golpe à vista de todos.

Ontem escreveu-se uma página negra na história democrática brasileira. Foi penoso assistir às horas de debate que mais se assemelharam a um circo ou a uma feira de variedades, com declarações a roçar o delírio. Conto com os dedos de uma mão o número de vezes que as razões evocadas para o “impeachment” (as famosas pedaladas fiscais) foram evocadas – bem menos vezes do que “o fim dos comunistas no Brasil”. Não foi sem nojo que fui seguindo a votação, acompanhando uma página de Twitter que, para cada deputado e à medida que iam votando, ia indicando os seus problemas com a justiça. Ouvir a palavra “democracia” e “a luta contra a corrupção” ser evocada por quem votou pelo “impeachment” e está a ser investigado por uma panóplia de crimes é ofensivo e insultuoso para todos os democratas.

Houve, felizmente, quem estando na oposição ao governo e a Dilma tenha tido a coragem de apontar o óbvio: a democracia é para respeitar. Uma palavra para os corajosos deputados do PSOL que, fazendo oposição, foram sempre vocais a favor do respeito pelos princípios democráticos e contra uma tentativa ilegítima de usurpação do poder pela quadrilha de Temer e Cunha. Neste jogo de crimes, o PT está longe de estar isento mas tal não deve – não pode – legitimar a destituição de uma presidente que, contrariamente à grande maioria dos deputados que contra ela votaram, não tem uma única acusação de carácter criminal contra si.

O processo de “impeachment” acaba apenas de começar mas, se o objectivo principal é a estabilidade do Brasil, está condenado a falhar. A confirmar-se a destituição de Dilma, apenas novas eleições podem legitimar um novo presidente. Caso contrário, assistiremos a um arrastar da crise até 2018, data do próximo acto eleitoral presidencial. A partir de ontem, o tempo de cerrar fileiras à volta dos defensores da democracia começou. A partir de ontem, todos os brasileiros perceberam que o seu voto vale menos que as jogadas parlamentares. Ontem, todos perderam, mas foi sobretudo a democracia a principal vítima deste golpe.

 

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Telhados de vidro e muro de latão

O maibrasil de vidros duro de presenciar do outro lado do Atlântico nem é a questão da queda do governo do PT, mas ver o que a “Comissão Golpe” conseguiu fazer com os brasileiros: colocou mães contra filhos, amigos contra amigos, um país inteiro na sarjeta. Não há perdão para o que essas pessoas fizeram. 

Domingo será a deliberação da Câmara dos Deputados do Brasil sobre o processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff. Está a chegar a hora de vermos o resultado da novela de maior impacto visto desde a década de 90 do século passado chamada “Como pegar um país que até estava entrando nos eixos e bagunçá-lo por completo”.

Para assistir às cenas dos últimos capítulos ergueram um muro de latão na Esplanada dos Ministérios com a justificativa de maior segurança para a população que acompanhará a transmissão do acontecimento por ecrãs do lado de fora do Congresso Nacional. Pergunto-me se a elite política brasileira conhece a sua gente tratando-os como animais que necessitam ser divididos para não se agredirem?! Bem, de fato, houve uma segregação social muito impactante desde as últimas eleições, culminando com o xeque-mate de toda a oposição que não se contentou com a escolha democrática e precisou forjar arenas para destruir o ideal da democracia com um impeachment que não tem razão de ser senão para criar um “bolão” entre os deputados, com a generosa aposta de R$100,00 cada, num profundo desrespeito para com os seus concidadãos. O muro de latão, tão ridículo quanto a própria ideia de sua existência, por um acaso, é até uma alegoria bem conseguida da sociedade brasileira: de um lado empresários, políticos com mais zeros em contas bancárias que alguma vez se pôde contar; uma elite que não se acostuma com o fato do filho da empregada poder estudar na mesma escola que os seus filhos; famílias de milionários que pela primeira vez no Brasil foram presos e responsabilizados pelos seus atos criminosos. E do outro lado, uma classe de intelectuais, artistas, estudantes, trabalhadores que puderam aperfeiçoar os seus talentos com os incentivos econômicos desse governo. E os pobres. Ah sim, os pobres que no meio disso tudo serão os primeiros a sofrerem nessa sociedade democrática e inclusiva. Pois que o maior beneficiário com a queda do atual governo, Michel Temer, promete fazer valorosos cortes nos programas sociais como Minha Casa, Minha Vida, o Fies, entre outros. E claro, nos programas de intercâmbio educacional que possibilitaram milhares de brasileiros estudarem no exterior. Isso tudo em nome de uma “macro política” que poderá ser entendida como uma política de classes.

À parte dos planos maquiavélicos do senhor Temer, que até já antecipou a divulgação do discurso para a substituição de Dilma, temos uma histeria completa de homens e mulheres que parecem imaginarem-se no governo já na próxima segunda-feira, como é o caso da principal advogada pró-impeachment, Janaína Paschoal, que recentemente ficou famosa pela sua brilhante intervenção da cobra. Pois, para uma advogada com tamanha responsabilidade esperava-se mais do que gritos exaltados num discurso evangélico. Até o pai da senhora foi mencionado na sua intervenção, que teria mais credibilidade se fosse uma intervenção com um discurso bem construído. Não sei você caro leitor e cara leitora, mas a mim preocupa-me uma co-autora, em trâmites legais, da derrubada de um governo, fazendo uma intervenção digna de uma atriz de um filme de comédia entediante, onde a personagem principal se sente a própria Britney Spears com jogadas fantásticas do cabelo à la pop star em decadência. Se lhe pudesse dar um conselho de amiga, diria para a ‘aspirante’ de advocacia e showbiz ter aulas de retórica com o Advogado-Geral da União, José Eduardo Cardozo, este sim traz coerência ao discurso. Por sua vez temos Aécio Neves que poderá, ao invés de construir, com o dinheiro público, uma pista de pouso na propriedade de seus familiares, sentir-se confortável para construir antes um aeroporto inteiro com o dinheiro do contribuinte, pois claro, o seu papel na queda do governo Dilma não é tão modesto para menos do que isso. Contudo o ‘playboy’, como era chamado em Minas, sairá tão ileso (e sorridente, como sempre) quanto o esquema de corrupção que esteve envolvido com a empresa Furnas no ano passado. Como Aécio, imagino o Sr. Presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, a mexer nervosamente os seus “oculuzinhos” a imaginar-se podendo deleitar-se da câmara secreta da Assembleia de Deus, mas desta vez  “doando” para a instituição religiosa mais de meio milhão sem pudor algum; continuar com a sua conta na Suíça e melhor, sem precisar provocar um impeachment para desviar as atenções, em retaliação ao favor negado pelo PT na abertura do processo de cassação do seu próprio mandato. Ainda sobre o senhor, resta saber por que foi mencionado como “O Caranguejo” na lista da Odebrecht (?) – será alguma conotação religiosa ou um nome fácil para ser utilizado em código morse? E o juiz Sérgio Moro, ai esse será visto como herói, só espero que ele não consiga esconder por muito tempo qual será a sua paga. Por sua vez, o ministro do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, coisa mais linda de se ver será que este poderá dar habeas corpus à vontade para banqueiros acusados de desvio de verbas públicas, corrupção e lavagem de dinheiro, fugirem do país – O banco Opportunity agradece – e de fato será uma grande oportunidade de continuar caindo na boa graça das tradicionais famílias nordestinas e, no futuro, de outras tradicionais famílias  brasileiras. Contudo, nesse ninho de gente de muito boa índole e telhados de vidro maiores que o estado do Amazonas, contamos com a felicidade do deputado Jair Bolsonaro que poderá até escrever um manual com o título: “Ter filho gay é falta de porrada” e fazer palestras pelo país afora para difundir o pensamento machista e primitivo da escolha de quais são as mulheres que merecem ser estupradas, sim porque para esse… esse… essa pessoa, a violação feminina requer merecimento: o “não” proferido pela boca de uma mulher será sempre um “sim” e o homem decide se ela merece ou não uma violação. Bem, isso tudo enquanto o seu filho Flávio Bolsonaro sai dando tiros pela Barra Tijuca com um porte de armas ilegal. Fantástica e estimável a educação de tal família!

E como esses poderíamos lamentar a felicidade de outros e outras (mais ‘outros’ do que ‘outras’ porque a política brasileira é constituída de mais homens do que mulheres), caso o impeachment se conclua. E a Globo, esta poderá escapar do plano de regulamentação da mídia que seria implementado pelo governo Dilma, ainda com benefícios pelo belíssimo trabalho que concluiu no golpe de estado – enquanto emissora de televisão saiu-se como uma ótima brainwashing.

O mais duro de presenciar do outro lado do Atlântico nem é a questão da queda do governo do PT, mas ver o que a “Comissão Golpe” conseguiu fazer com os brasileiros: colocou mães contra filhos, amigos contra amigos, um país inteiro na sarjeta. Não há perdão para o que essas pessoas fizeram. Aos que acreditam em carma fica a esperança que a vida lhes devolva em dobro o caos social que implementaram, e aos que acreditam em justiça, como eu, esperam que na próxima segunda-feira, Dilma Rousseff ainda seja a presidente do Brasil, que os telhados de vidro se quebrem por completo e que o muro de latão demonstre que a sua existência é desnecessária e um absurdo autêntico, pois os brasileiros são maiores do que isso.

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(Nota: Em Lisboa um grupo de brasileiros, incluindo brasileiros que vieram estudar em Portugal com o apoio do governo brasileiro, fundaram o Coletivo Andorinha: Frente Democrática Brasileira de Lisboa. Podem conhecer mais sobre a iniciativa através da sua página de Facebook.)

Não é mentira, mas deveria ser

A Assembleia da República discutiu e chumbou ontem os dois votos de condenação propostos pelo PS e pelo BE em relação à condenação de 17 activistas angolanos. Recorde-se que estes activistas foram condenados, após uma série de peripécias jurídicas, a penas de prisão efectiva sob acusação de “actos preparatórios de rebelião e associação de malfeitores”. Isto por estarem reunidos numa leitura à volta do livro “Da ditadura à democracia”. Para além das muitas dúvidas legais sobre o teor da acusação, sobram dúvidas sobre a arbitrariedade da decisão e das penas atribuídas a cada um dos acusados. Esta decisão, para além se poder revelar um erro táctico por parte do poder angolano, mostra o carácter ditatorial do regime, deixando claro o receio que este sente em relação a qualquer tipo de oposição.

Num comentário na sua página pessoal, Rui Tavares aponta para um aspecto fundamental: “Ao governo cabe a diplomacia. À Assembleia da República cabe tomar posições políticas, representar os cidadãos e defender a sua liberdade.” O governo, pela voz do MNE foi aliás bem mais assertivo do que o habitual, indicando esperar que o restante do processo judicial “obedeça aos princípios fundadores do Estado de Direito, incluindo o direito de oposição por meios pacíficos às autoridades constituídas”. Infelizmente, essa defesa da liberdade e do Estado de direito não foi ontem promovida pela casa que representa a democracia em Portugal. Não é mentira de 1 de Abril, mas deveria ser.

Não sendo exactamente uma surpresa, uma vez que vem na sequência de outros votos de condenação similares, não deixa de ser de estranhar, embora por diferentes motivos, a rejeição dos votos de condenação propostos na AR por parte de alguns deputados do PSD e por parte do PCP. Do lado social-democrata, deputados como Duarte Marques apelidaram a decisão do tribunal angolano de “vergonhosa” tendo, apesar disso, votado contra os votos de condenação. A (tentativa de) justificação pode ser lida na sucessão de contradições que é a declaração de voto assinada pelo deputado, juntamente com quatro colegas de bancada. Do lado comunista, os argumentos da não ingerência na política de outros países (um critério claramente ambíguo, tendo em conta outras posições do partido) e do impacto que tal voto poderia ter nas “relações de Portugal com a CPLP e com o continente africano” são pouco convincentes.

Um voto de condenação por parte da AR teria certamente um forte significado político e é impossível não pensar nas potenciais consequências que tal decisão poderia ter em relação aos muitos milhares de portugueses que vivem em Angola. Apesar disso, nenhum negócio, nenhuma compra ou venda e nem nenhuma troca de favores pode justificar o virar a cara à falta de democracia e aos direitos humanos. E é precisamente nesses domínios que Portugal pode e deve tentar assumir um papel destacado em todos os níveis: junto da União Europeia, da ONU e, não menos importante, da CPLP.

Bruxelas

Não me é ainda fácil comentar com o afastamento necessário os ataques terroristas que atingiram Bruxelas no dia 22. Os locais escolhidos pelos assassinos são-me demasiado familiares, pontos de passagem frequente, minha e dos que me são próximos e, de forma algo egoísta, é impossível não pensar “e se”. Bruxelas juntou-se assim ao triste rol de cidades visadas por ataques feitos sob a bandeira jiadista. De Tunis a Beirute, de Abidjan a Bruxelas, a mensagem que os extremistas tentam passar é clara: ninguém está a salvo e todos devem ter medo. A minha reacção primária é, no entanto, no sentido oposto. Não lhes darei esse o prazer de alterar o meu modo de vida um milímetro que seja e, dois dias depois, este parece ser o espírito da grande maioria dos belgas – note-se que há uma “marcha contra o medo” convocada para Bruxelas no próximo domingo.

Infelizmente, contra o extremismo não bastarão declarações de boa vontade. Igualmente, o securitarismo e a perda de direitos e de liberdades, para além de ter um sucesso dúbio na prevenção de futuros ataques, servirão para criar ainda mais ódio. Estes ataques serviram já o populismo e a demagogia de vários governos, nomeadamente o polaco que se apressou a afirmar que não aceitará os refugiados que já se havia comprometido receber ao abrigo do programa europeu. Isto apesar de todos os terroristas de dia 22 (à semelhança de quase todos os outros que têm cometido ataques em solo europeu) serem cidadãos nascidos e criados na Europa. Mais do que do encerramento de fronteiras precisamos de uma Europa verdadeiramente livre e unida, onde as suas forças de segurança e serviços de inteligência esqueçam os seus nacionalismos e partilhem de forma eficiente as informações de que dispõem. Contrariamente ao que aconteceu em França, o governo belga está, pelo menos para já, a resistir às pulsões ultra-securitárias, não tendo activado o estado de emergência.

A rejeição do securitarismo não pode nem deve significar um virar a cara ao problema. Olhando para a origem geográfica de muitos dos que partem dos países europeus para a Síria, há um padrão claro: jovens, residentes em bairros mais ou menos periféricos, vítimas de uma discriminação estrutural e com uma identidade fluída. Têm pois que ser tomadas medias concretas para evitar a radicalização. No imediato, é preciso investigar imãs radicais que professam o seu ódio livremente e encerrar todas as mesquitas ilegais. Em paralelo, é essencial que os Estados invistam mais na integração e inclusão das suas comunidades imigrantes, devendo também estas ser capazes de se esforçarem mais, saindo da bolha em que muitas vezes se encerram.

Uma das fotos mais marcantes após os atentados mostra uma criança bloqueada no campo de refugiados de Idomeni, na Grécia, segurando um cartaz onde se lê “sorry for Brussels”. Muitos órgãos de comunicação social traduziram esta mensagem como se de um pedido de desculpas se tratasse. Não me parece que seja esse o sentido da mensagem, onde também se pode ler um sentimento de empatia pelas vítimas do jiadismo em Bruxelas, mas também na Síria e no Iraque. Nestes países, milhares de pessoas como essa criança vivem permanentemente ameaçados pelo terrorismo, o que nos deveria envergonhar a todos pelo acordo que os países europeus assinaram com a Turquia e fazer pensar na urgência de acolher os refugiados de um modo digno, porque uma vida belga ou francesa não pode nunca ter mais valor que uma vida síria ou iraquiana. Quanto a pedidos de desculpas por parte de muçulmanos, não só não os quero, como os rejeito, pois são eles as primeiras vítimas daqueles que dizem professar a sua religião. Aliás, se a bomba que explodiu em Maelbeek estava a poucos metros da Comissão Europeia, estava também a poucos metros da principal mesquita belga, no que, simbolicamente, representa também um ataque ao próprio Islão.

Clinton vs Trump

Os resultados de mais uma “super terça-feira” nas eleições primárias para a escolha dos candidatos à presidência dos Estados Unidos trouxeram algumas conclusões importantes. Embora restem ainda vários estados a ir a votos e se mantenha possível uma candidatura independente e de peso no campo republicano, parece ser cada vez mais certo que o embate final será entre Hillary Clinton pelo partido Democrata e Donald Trump pelo partido Republicano. Se, do lado democrata, Hillary acaba por ser a candidata “lógica”, nada, ainda há bem poucos meses, faria prever que uma personagem como Donald Trump pudesse conseguir a nomeação republicana, assente num discurso extremamente agressivo e, em vários capítulos, bem mais conservador do que aquilo a que o próprio Trump havia habituado os americanos – note-se que, ao longo dos anos, o candidato tem apoiado sobretudo o partido democrata.

Contrariamente à grande maioria dos prognósticos feitos antes do início do processo de eleições primárias, Hillary Clinton não está a ter um simples passeio até à nomeação. Sendo verdade que os resultados das primárias realizadas ontem (16/03) parecem ter confirmado o seu favoritismo e afastado definitivamente (?) Bernie Sanders da nomeação, não é menos verdade que o senador do Vermont se revelou um adversário difícil de bater. Com 74 anos e um longo historial na defesa dos direitos cívicos nos Estados Unidos, Sanders tem sido uma verdadeira lufada de ar fresco nesta campanha, falando directamente aos 99% dos americanos que vivem com maiores ou menores dificuldades, num país onde as desigualdades sociais se têm alargado. Com um discurso aguerrido e sensato, o senador atraiu muitos americanos, sobretudo jovens, ansiosos por encontrar uma alternativa ao establishment que os possa ajudar a definir um rumo novo para o país. Não sendo ainda impossível, a sua nomeação está cada vez mais distante mas, apesar disso, Sanders é já um dos vencedores destas eleições.

No que diz respeito ao partido Republicano, aquilo que começou por parecer uma impossibilidade, parece-se cada vez mais a uma inevitabilidade. Donald Trump, magnata americano e estrela mediática, está a um pequeno passo de conseguir a nomeação como candidato à presidência. Pelo caminho ficaram já Ben Carson – um dos principais candidatos antes do início das votações – e, desde ontem, Marco Rubio que se assumia como o candidato da lucidez quando comparado com Trump ou Ted Cruz.

O que mais assusta nesta previsão é o facto de Donald Trump assentar a sua campanha no discurso do ódio e da violência, assumindo-o como sendo simplesmente politicamente incorrecto mas necessário. O cansaço dos americanos em relação à política pode ajudar a perceber o fenómeno mas não é a única explicação. Olhando para o perfil dos votantes em Trump, percebe-se que tem mais sucesso junto dos cidadãos mais atingidos pelos problemas económicos bem como dos que têm menor nível de educação. Estes são dois aspectos que reflectem também as desigualdades do país e que urge corrigir.

A confirmar-se o cenário Hillary contra Trump, não pode haver lugar a dúvidas. Entre uma candidata que, tendo várias falhas, dá garantias de uma presidência na linha de Obama e um candidato irascível e com um discurso racista e xenófobo, não pode haver hesitações. Democratas e republicanos terão que saber optar por aquele que será o melhor presidente para o seu país e, por extensão, para o próprio planeta.

A UE no meu álbum fotográfico

No artigo publicado no passado dia 1 de Março, José Vítor Malheiros (JVM) lança um desafio aos leitores. Pede-nos o colunista que pensemos nas nossas memórias e nos eventos marcantes das últimas décadas e que contemos quantos associamos à União Europeia (UE). Num exercício de antecipação, JVM assume que nenhum desses eventos está ligado à UE, concluindo que uma vez que esta “não está associada a nada de particular e, principalmente, não está associada a nada de que nos possamos orgulhar”, “não aparece no nosso álbum de fotografias”. Pois bem, decidi aceitar o desafio e, começando no final da década de 80, quando nasci, fui olhando para o meu álbum fotográfico, tentando perceber se a UE estava realmente ausente.

Numa das primeiras fotografias que encontro, vejo-me mascarado de palhaço, com alguns brinquedos. Após um sorriso inicial e prestes a virar a página do álbum, convencido que ali não havia sequer uma tonalidade de UE, paro para reflectir. Talvez à época ainda não existisse mas, hoje em dia, aquele eu em criança estaria, graças à legislação europeia, certamente a vestir roupas devidamente fabricadas, sem o recurso a químicos perigosos. Os brinquedos na minha mão estariam, tal como as roupas, abrangidos por uma lei europeia que assegura a sua segurança. Penso que esta coincidência será apenas uma excepção à regra indicada por JVM. Continuo a folhear e vejo-me, com uns 9 ou 10 anos, em Genebra, na Suíça. Ah! lembro-me bem dessa viagem, no nosso mítico Opel Vectra (ao que parece, 3 estrelas no índice de segurança da NCAP, apoiado pela UE), de Amarante para o mundo. Viajar sem pressas e sem parar nas fronteiras. Esperem lá, agora que penso melhor, lembro-me de termos ficado parados algum tempo na fronteira entre a França e a Suíça, mas de certeza que a UE não tem nada a ver com o tema.

Passo do formato físico para o digital e vejo as fotografias que tenho guardadas no computador. Lá estou eu na universidade, a estudar as diferentes directivas, leis e regulamentos de qualidade e ambiente, a grande maioria instituída pela UE. Continuo no mundo universitário e entre uma cerveja e outra vou parar às fotos do meu Erasmus. Lituânia! Quem diria que algum dia iria viver num dos Estados Bálticos (se bem que para a minha avó estive sempre na Rússia). As fotos sucedem-se: Polónia, Letónia, Estónia, fartei-me de passear e sem parar em fronteiras, excepção feita à Bielorússia, claro, pois está fora de Schengen e da UE. Tantas caras e tantas recordações, tantos Amigos (assim mesmo, dos de maiúscula) espalhados pelos quatro cantos do continente e que só pude conhecer graças à bolsa do Erasmus.

Terminados os estudos, o trabalho. Em primeiro lugar, au pair em Paris, para onde fui de um dia para o outro. E pensar que, nos anos 60, os meus avós tiveram que mover mundos e fundos para fazer esta mesma viagem. Depois de Paris, Bruxelas, o primeiro estágio “a sério”. Não fosse a bolsa do programa Leonardo da Vinci e, muito provavelmente, nunca o poderia ter feito. Segue-se Milão, Parma e novamente Bruxelas. Felizmente só preciso de fazer a minha declaração de rendimentos no país em questão uma vez que, também graças à UE, os Portugal tem acordos de troca de informação com estes parceiros.

Bem, devo mesmo ser um caso especial pois, para onde quer que olhe parece-me que vejo a UE e, quase sempre, pelos bons motivos. Arriscando também um prognóstico, acho que se os leitores da minha geração fizerem este exercício, as conclusões serão semelhantes. Poderíamos também analisar os acontecimentos históricos – pegando no exemplo da Malala Yousafzai referido por JVM, bastaria dizer que antes do prémio Nobel, venceu o prémio Sakharov do Parlamento Europeu – mas acho que as histórias de cada um de nós, europeus, servem para mostrar que a UE é uma constante nos nossos álbuns fotográficos.

Agora, enquanto oiço a nona de Beethoven, espero que a minha companheira, não portuguesa e que conheci enquanto trabalhava em Portugal graças às facilidades criadas pela UE, chegue a casa. Será melhor ir adiantando o jantar mas estou sem grande inspiração. Uma coisa, no entanto, é certa, será algum produto devidamente rotulado como sendo de agricultura biológica (bolas outra vez a UE e o seu trabalho ao barulho). Com a data do meu aniversário a aproximar-se vou também pensando em quem convidar para a festa. A UE, essa, não será certamente necessário convidar pois comigo sabe que pode sempre sentir-se em casa, tal como eu me sinto em casa nela.

O RBI como projecto alter-globalista

O debate sobre o rendimento básico incondicional (RBI) tem tido nos últimos dias bastante destaque em Portugal. Fruto de uma conferência organizada na Assembleia da República pelo Grupo de Estudos Políticos, Movimento RBI Portugal, o Grupo de Teoria Política da Universidade do Minho e o PAN, o tema foi abordado em vários órgãos de comunicação social. O RBI, pelo facto de poder assumir vários formatos  e pela miríade de opções que permite é não só um tema complexo mas, quando analisado de forma mais detalhada, uma sucessão de vários temas diversos e complementares. Justifica-se assim o peculiar facto de um rendimento incondicional dispor tanto de acérrimos apoiantes como de opositores  em ambos os lados do espectro político.

Apesar da sua complexidade, a possibilidade de instituição de um RBI é um debate necessário e também urgente, num momento em que as questões relacionadas com a falta de emprego ou da abundância de empregos precários, em parte associados com o aumento da automação, continuam (e continuarão) na ordem do dia. Neste capítulo, as perspectivas são claras e assustadoras: nos EUA, 47% dos empregos que actualmente existem, com especial destaque para o sector dos serviços, trabalho administrativo e vendas, são susceptíveis de ser automatizados em 2050. Com o expectável aumento populacional a nível global e a menor necessidade de mão-de-obra, serão cada vez em menor número os postos de trabalho disponíveis o que agravará ainda mais a competição por esses postos, favorecendo assim a precarização do trabalho e mantendo as taxas de desemprego em valores abusivamente elevados. A instituição de um RBI pode pois assumir-se como fundamental na procura da coesão da sociedade.

As dúvidas existentes à esquerda sobre o impacto que um rendimento incondicional poderia ter nas restantes funções sociais do Estado são perfeitamente válidas. Um RBI que assente exclusivamente num cheque dado a todos os cidadãos pode efectivamente servir de justificação para o desinvestimento público em sectores como a saúde e a educação, ao abrigo de uma “liberdade de escolha” que mais não é do que um apoio ao sector privado em detrimento do sector público. São também válidas as reservas em relação ao aumento do consumo – e sobretudo sobre o tipo de consumo – associado a uma maior disponibilidade de rendimentos e os impactos ambientais associados.

Nenhum esquerdista pode, no entanto, recusar a ideia de que a existência de um RBI favoreceria a emancipação dos cidadãos, acabando com a obrigatoriedade de associar o trabalho a um rendimento. Outro aspecto importante nesta discussão é o facto de o combate às desigualdades feito exclusivamente a jusante ter falhado. Torna-se portante necessário considerar uma pré-distribuição de modo a corrigir essas desigualdades desde a raiz, capacitando e dando mais e mais justas oportunidades a todos os cidadãos, garantindo ao mesmo tempo que o Estado mantém a qualidade dos seus serviços e não promove a depleção ecológica. Não é certamente uma tarefa fácil, mas também não é impossível.

As questões relacionadas com o financiamento de um rendimento básico incondicional são, sem dúvida, as mais complexas de responder. Esse debate não deve, no entanto, impedir o debate sobre que tipo(s) de RBI poderia(m) ser instituídos. Desde logo, há diferentes escalas de aplicação do rendimento – local, nacional e, no caso europeu, ao nível da União. Um RBI poderia assumir apenas uma dessas escalas ou poderia estar presente nas três, com diferentes objectivos, de modo a que se complementassem. O tipo de “rendimento” é também variável, podendo tratar-se simplesmente de uma transferência financeira, mas podendo também assumir um carácter de um cheque a ser utilizado com um fim específico – e.g. espectáculo artístico, na compra de produtos locais – podendo assim assumir o papel de uma moeda complementar. Assim, sendo certo que a instituição de um RBI pode representar uma ameaça ao Estado social, pode também assumir-se como um projecto socialista ou como um projecto de alter-globalização e de coesão territorial.

Imaginemos que em Portugal se instituíam dois tipos de RBI complementares, um a nível autárquico e outro a nível nacional. O primeiro seria pago directamente pela autarquia enquanto o segundo seria pago pela administração central. Coloca-se desde logo uma questão: o que impede todos os habitantes de uma determinada cidade de utilizar todo este rendimento numa outra cidade, potencialmente mais próspera, prejudicando assim a autarquia que lhe financia o rendimento? Do mesmo modo, caso o rendimento dado pela administração central fosse uma simples transferência financeira, nada impediria que a sua totalidade fosse gasta em produtos importados de locais com padrões menos exigentes no respeito pelas condições laborais e/ou ambientais.

Mais do que uma simples transferência de capital, estes rendimentos poderiam assumir a forma de cheques ou vales a ser utilizados com fins específicos. O rendimento dado pela autarquia poderia assumir a função de moeda complementar, podendo apenas ser utilizado em pequenas e médias empresas presentes na cidade, estimulando assim o comércio local e promovendo a fixação da população em todo o território. Produtos alimentares, devidamente identificados como sendo de origem local, poderiam também ser adquiridos com este rendimento, promovendo assim o circuito curto e facilitando a troca directa entre o produtor e o consumidor, nomeadamente reavivando os mercados (no sentido do espaço físico) locais.

Quanto ao rendimento dado pela administração central, consistira em vales a ser utilizados em três grandes áreas: 1) sector cultural; 2) pagamento de serviços essenciais; 3) compra de produtos de primeira necessidade. O sector cultural é, em grande parte dos casos, dos principais afectados nos períodos de crise. Em primeiro lugar porque o Estado desinveste nesse sector e em segundo porque os cidadãos, vendo os seus rendimentos reduzidos, têm menos disponibilidade financeira e muitas das vezes optam por cortar nos seus gastos culturais. Um passe cultura dado a todos serviria para garantir uma dinâmica saudável num sector que é essencial para o desenvolvimento do país. O facto de um rendimento dado a todos os cidadãos do país poder ser utilizado no pagamento de serviços essenciais (e.g. electricidade e água) teria dois efeitos. O facto de se tratarem de serviços essenciais ajudaria os cidadãos com menos posses e, ao mesmo tempo, fomentaria uma redução do consumo, uma vez que caso o rendimento não fosse utilizado para o pagamento desses serviços, estaria disponível para outros fins. Adicionalmente, este rendimento dado a nível nacional serviria para adquirir produtos de primeira necessidade rotulados como sendo ecologicamente sustentáveis e/ou originários do comércio justo. Deste modo, estar-se-ia também a democratiza o acesso a este tipo de produtos e estimulando a sua produção.

A instituição de um rendimento básico incondicional não é portanto uma receita única a ser aplicada em qualquer parte do mundo e em qualquer escala. Trata-se um conceito multiforme e que deve assim ser debatido e, se for caso disso, testado. É preciso, desde a primeira hora, ter em conta as questões que se levantam sobre um tal rendimento e o impacto que poderá ter na forma como o Estado presta os seus serviços. Como demonstrado, um rendimento básico pode até servir para aumentar a coesão territorial de um país e para combater as desigualdades que se verificam de forma cada vez mais acentuada em grande parte das sociedades. Finalmente, com a expectável redução do trabalho disponível, torna-se premente separar o trabalho do rendimento associado e aí, a discussão sobre um RBI é não apenas importante, como fundamental.