O Pirata Incomum

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   Jean-Baptiste-Siméon Chardin, 1734,  Le Philosophe lisant

O Jornal de Notícias publicou um artigo sobre “a derradeira forma de pirataria”, criada por Peter Sunde, o fundador do Pirate Bay. Kopimashin é uma instalação artística e tem como objectivo fazer cem cópias por segundo da canção “Crazy”, de Gnarls Barkley, enquanto ao mesmo tempo contabiliza o consequente e hipotético prejuízo criado à indústria musical (estimado em 9 milhões de euros, diários).

Saltam à vista as várias interrogações que Kopimashin coloca e repousam elas sobre: a noção de pirataria; a natureza legal do download; o prejuízo pelos descarregamentos criado; a relação que estabelecemos com aquilo que é virtual; entre outros. Quero reter-me no último ponto e e perguntar: quem é que consome as infinitas cópias de “Crazy”?

A referida canção abre com uma estrofe que assim termina: “[e]ven your emotions had an echo/ [i]n so much space” e que está claramente a dialogar com a vocação sem terra à vista de Kopimashin, criadora do maior número de cópias feito. Partindo do princípio de que o espectro emocional de uma realidade virtual, a existir, mimetiza o do humano, são afinal emoções humanas que ocupam os espaços outros, além humanos, sendo o eco a única coisa que criam: num movimento eterno e espelhado: de si, para si – ou seja, nada as reconhece. Então por que razão antropomorfizamos o download?

Se as cópias da instalação de Sunde não criam prejuízo real às empresas que dizem ter prejuízo por causa da pirataria, conservando virtualmente a mesma forma das cópias que são encaradas como avistamentos de piratas, então o que Kopimashin coloca em causa é a valoração do acto de consumo. A minha cópia é igual àquelas que são criadas pela instalação, mas vale mais, porque posso ouvir e portanto consumir. Lembrei-me de George Steiner que, a propósito da pintura de Chardin que ilustra esta entrada, escreveu em “The uncommon reader” (1996, No Passion Spent) sobre a leitura como experiência, e de como a literatura só existe através do fenómeno relacional que é a leitura (ou a audição, no caso das tradições orais). Se um livro fechado é uma história por contar, uma canção copiada é uma acção por vender?

Os problemas criados pelo mundo virtual merecem e devem ser discutidos, exercício que só terá bons resultados se for feito através de um prisma tão disruptivo quanto o da origem dos problemas, sobretudo porque o mundo é hoje mais virtual do que o mundo. Kopimashin já está a fazer esse trabalho, incansavelmente.

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O ponto 2 do Título II do Tratado

Em 22 de abril do ano 2000, foi deferido na cidade de Porto Seguro o Tratado de Amizade, Cooperação e Consulta entre a República Portuguesa e República Federativa do Brasil, sendo aprovado pela Resolução da Assembleia da República nº 83/2000. Este tratado, diplomaticamente foi concebido para demonstrar um apreço singular entre as duas nações irmãs. Contudo, existe uma determinação que automaticamente as separa: o direito dos cidadãos de ambas as nacionalidades exercerem o seu direito democrático e político em seus países de origem.

O ponto 2 do Título II do presente tratado refere-se ao estatuto de igualdade entre portugueses e brasileiros que se divide em duas instâncias: a primeira Estatuto de Igualdade de Direitos e Deveres, que confere a quem o requere os mesmos direitos e deveres dos cidadãos nacionais e o Estatuto de Igualdade de Direitos e Deveres e Direitos Políticos, que aborda os aspetos do anterior, com o acréscimo do requerente poder exercer os mesmos direitos políticos dos nacionais, o que inclui poderem eleger e serem eleitos nas eleições do país em que residem, com exceção às eleições presidenciais e outros cargos de presidência, como por exemplo, presidente do Tribunal Constitucional. E é aqui que encontramos uma lacuna que inibe o uso da democracia de fato que, neste caso, vem carregada de perda de direitos.

O nº 3 do artigo 17º do Título II refere: “O gozo de direitos políticos no Estado de residência importa na suspensão do exercício dos mesmos direitos no Estado da nacionalidade.” No Brasil, a participação nas eleições é obrigatória – o que traduz numa maior participação, é verdade, porém não necessariamente com consciência política e cívica por parte dos eleitores. Essa obrigatoriedade envolve uma esfera sistémica que permanece em constante atualização com a Justiça Eleitoral brasileira, o que por motivos legais, obriga os brasileiros a estarem em consonância com a mesma para a obtenção de documentos nacionais, participações em concursos públicos e outras situações. E isto justifica o não sucesso deste tópico do Tratado de Porto Seguro, pois ao suspender os direitos políticos dos brasileiros e portugueses que o requerem, suspendem inclusive o seu vínculo institucional com o estado nação. Existem casos práticos e não raros de pessoas que residem em Portugal, requereram os seus direitos políticos neste país e estão no limbo entre os dois países na medida que não têm a nacionalidade portuguesa e não podem requerer o passaporte europeu, como também não podem renovar o passaporte brasileiro porque os seus direitos políticos estão suspensos no Brasil. Ou mesmo casos de brasileiros que gostariam de se candidatar em concursos públicos e que não o podem fazer porque necessitam estar de acordo com a Justiça Eleitoral brasileira e com a suspensão dos direitos políticos não podem se candidatar, como é o caso de concursos para o Consulado do Brasil e Embaixada do Brasil que exigem um comprovativo de quitação das obrigações eleitorais. Esses são dois exemplos recorrentes que abandonam o ideal com que o Tratado de Porto Seguro foi construído e injustamente colocam os cidadãos numa posição de escolha ingrata por terem que optar entre poderem participar da vida política e democrática do país que residem ou perderem os seus direitos no seu país de origem, o que se traduz em dificuldades como as citadas acima.

Não obstante a isso, entendemos hoje, dezasseis anos após o Tratado de Amizade ter sido assinado, que a democracia está indo de encontro a uma escala mais alargada do que as fronteiras do estado nação. Embora as leis sejam nacionais e regionais, observando o projeto europeu, os cidadãos de todo o mundo criaram, através da tecnologia, maneiras de se conectarem entre si e poderem se dar o direito de escolha do mundo que querem co-existir. Podemos ver esses acontecimentos em petições, em plataformas de crowdfunding, em cartas, através de emails, para os líderes mundiais sobre uma determinada situação, principalmente naquelas que incluem os direitos humanos. Essas iniciativas fazem parte uma democracia global que não inibe a democracia de um país, mas que têm um poder de influência a nível político em todos os cidadãos do mundo. Portanto, o Tratado de Amizade, concebido no ano 2000, requer atualmente uma revisão textual, cívica e política que vá de encontro às reais necessidades dos brasileiros e portugueses que residem nos dois países. Do contrário, o ponto 2 do Título II referente aos direitos de igualdade, fracassará, pois ficará muito aquém do que poderia ser se as barreiras de suspensão dos direitos políticos de ambos os cidadãos nacionais fosse ela mesma suspensa no tratado, pois em Portugal apenas uma parcela pequena de brasileiros requerem ao estatuto com direitos políticos exatamente porque os mesmos serão suspensos no Brasil. Com a facilidade de informação e de trânsito a nível mundial, não faz sentido que a democracia seja limitada às fronteiras, neste caso concreto, dos dois países. Nem muito menos faz sentido a crueldade de colocar os cidadãos numa posição de escolha em que eles perderão os direitos adquiridos no país em que nasceram por quererem contribuir com a democracia do país em que escolheram para viver. Ainda mais sendo que todos nós somos moradores de uma era que está em constante mutação, sem grandes possibilidades laborais, de uma construção de carreira sólida que nos faça permanecer até ao túmulo num mesmo país. Basta para isso observar os núcleos migratórios dos últimos anos na União Europeia e nos países do Mercosul.

Portanto, apesar do Tratado de Amizade, Cooperação e Consulta entre a República Portuguesa e República Federativa do Brasil, ser uma construção e uma iniciativa diplomática de grande valor, atenta também contra a participação política, cívica e democrática nos dois países porque retira direitos adquiridos de seus cidadãos e por isso o ponto 2 do Título II do Tratado se torna um mero adereço do que poderia ser. Sendo extinta essa limitação de suspensão de direitos, que se transforma na prática em uma perda de direitos, poderia ser um potente impulsionador de um sistema democrático inédito na contemporaneidade e digno da cidadania no século XXI.

 

Texto de Geizy Fernandes

Da necessidade e da violência

No seu ensaio L’été, Albert Camus, após relatar um combate de boxe, refere que ali a simplificação é fácil: o bom e o mau, vencedor e vencido. Continuando, refere que em Coríntia, na Grécia Antiga, o templo da necessidade era vizinho do templo da violência. Na eleição para presidente da República do próximo dia 24 também haverá apenas um vencedor. Mas serão muitos os vencidos. Se as sondagens que têm vindo a público se confirmarem, Marcelo Rebelo de Sousa, o político-professor-comentador, poderá ser eleito logo à primeira volta. Os derrotados não serão apenas os seus nove adversários mas também todos os que se empenharam e empenham no apoio a um governo apoiado por toda a esquerda parlamentar. Forçar uma segunda volta e tentar eleger um presidente apoiado pela esquerda é uma verdadeira necessidade. Chegou pois o momento de recorrer à “violência”.

Uma nota prévia: quando neste texto me refiro a violência, não o faço, logicamente, no sentido de agressão, mas sim no sentido da veemência argumentativa. Marcelo Rebelo de Sousa (MRS), contrariamente aos restantes candidatos a PR, beneficiou de um palco privilegiado, tendo tido assento semanal como comentador televisivo durante quinze anos. Deste modo, não é de estranhar o facto de abdicar de outdoors e, no fundo, de abdicar de fazer campanha. Confiante de que a sua popularidade bastará para ganhar a eleição – e não se inibindo de afirmar que será PR dentro de poucas semanas – MRS, no seu habitual estilo bonacheirão, pouco mais tem feito que distribuir alguns sorrisos e ir aparecendo. A comunicação social, que poderia ter um papel importante na promoção das ideias dos vários candidatos, parece já ter escolhido quem será o futuro PR, não se coibindo de apoiar, por vezes de forma bastante clara, o candidato MRS.

Restam menos de três semanas para as eleições presidenciais. Após dez anos de Cavaco Silva como presidente, tornou-se claro o papel e a importância que um PR pode ter. Esta não é apenas mais uma eleição, por mais que se tente passar essa imagem. É preciso que antes de eleger um Presidente da República se perceba claramente o que este pensa, de modo a antecipar como agirá assim que chegar a Belém. E é esta a violência necessária. É fundamental que a campanha eleitoral exista de facto. Se a comunicação social tenta fazer desta campanha um passeio para MRS, compete aos restantes candidatos obrigar Marcelo a dizer o que pensa. Marisa Matias, no debate que recentemente teve com MRS, foi a primeira a encostar o candidato às cordas, forçando-o a explicar os seus comentários em relação à despenalização da IVG e em relação ao BES.

Portugal é hoje um país socialmente diferente. Depois das eleições legislativas do passado dia 4 de Outubro, que deram uma clara maioria às forças de esquerda, a eleição do PR deveria ser a continuação da expressão dessa alteração. MRS sabe-o muito bem e como tal expõe-se o mínimo até dia 24, onde aposta tudo numa vitória à primeira volta. Sampaio da Nóvoa é o candidato com mais hipóteses de passar a uma eventual segunda volta e é sobretudo o que mais facilmente poderá agregar o voto de toda a esquerda. A sua derradeira oportunidade será no debate com Marcelo Rebelo de Sousa onde terá que conseguir mostrar por que é não apenas o melhor candidato mas sobretudo o melhor Presidente que Portugal pode ter neste momento. O combate pode parecer ganho mas, tal como no boxe, só acaba quando o gongo sonar. E por vezes pode-se até cair ao tapete várias vezes e ainda assim ser-se vencedor por poucos pontos.

Sexismo pós-moderno

Perante o abismo natalício – como se as caixinhas de chocolates com as datas marcadas que vamos limpando à medida que contamos os dias fossem uma qualquer cronologia escatológica – encontrei-me perante a necessidade de ter de comprar uma prenda para uma menina de 6 anos. Avancei confiante para o shopping center, o lugar da redenção pós-moderna como diria J. G. Ballard, aguardando uma qualquer revelação. Como nunca fui muito jeitoso para comprar prendas, a estratégica era esperar que ela se apresentasse perante mim. Como que ao profeta. A revelação, contudo, foi de outra ordem. E ainda há quem diga que o Natal já nada tem de metafísico.

Entre as escadas rolantes e o hipermercado – sim, confesso que ainda me passou pela cabeça a hipótese de ir ao hiper buscar um brinquedo Popotiano (não, esta não é uma referência literária) – chamou-me à atenção uma pop-up store, plantada no meio do corredor. No logo, lia-se Science4You. O nome cutucava-me a ponta da língua, confirmado depois pelo extenso catálogo de prémios de empreendedorismo que a start-up orgulhosamente ostenta. Detive-me por dois minutos. Olhei para a montra. Olhei para o catálogo. Olhei para quem me acompanhava. Reflecti. E levantei os olhos com a mente no século XIX.

O meu ponto é este: sugiro que listemos os artigos que aparecem fechados em invólucros cor-de-rosa. O primeiro deles intitula-se Fábrica de Sabonetes, seguido da Oficina de Tranças, da Ciência das Velas, da Fábrica de Perfumes, da Fábrica de Batons e da Fábrica de Champô e Gel de Banho. E, pronto, é isto. As meninas de 6 anos que procurem diversão na Science4You parecem ser naturalmente conduzidas ao seu papel social: ao papel de cabeleireira, de hipotético modelo ou, melhor ainda, ao papel de “simplesmente mulher”, desde que lavada e cheirosa. Já sei que me vão dizer que estou a ser radical e que não é nada disto e que até há muitas meninas a comprar o kit de paleontólogo e que não há de nada mal por também haver produtos cor-de-rosa sobre perfumes e sabonetes. Respondo com o seguinte: quantos meninos, do sexo masculino, é que já compraram a Fábrica de Sabonetes? Ou a Oficina das Tranças? Vamos mesmo ter esta discussão?

E este é recorrentemente um dos meus problemas perante o empreendedorismo. Pensar, dispensa-se. O sucesso de uma empreitada empreendedora é pura e simplesmente tabelado pelo seu volume de vendas. Toda e qualquer crítica, toda e qualquer autocrítica, perante trivialidades como a normalização ou normatização de papéis sociais, é escusada mediante a apresentação de uma folha Excel que bata certo com as placas giratórias terrestres: as placas dos mercados, do capital, e da finança. Tudo o resto é conversa. Um bom produto é um produto que vende. Nada mais interessa. Nada mais está em causa. Quando vende, é porque o público o quer, e se o público o quer muito, dá-se um prémio para que o público ainda o queira mais. E a bola de neve engrossa a cada metro que calca. Até já cobre as renas.

(Nota: texto originalmente publicado em Panorama.)

Que jornalismo?

Uma das notícias que marca esta semana é o despedimento de dois terços dos trabalhadores dos jornais “Sol” e “i”, consequência da decisão do grupo “Newshold” de deixar de investir como accionista dos jornais. Com a ameaça constante do desemprego e a precarização do seu trabalho, não são apenas os jornalistas que são vítimas, é o próprio jornalismo isento, plural e de qualidade que está em risco. No topo da lista dos jornalistas mais ameaçados aparecem, muito provavelmente, os que trabalham na imprensa escrita “tradicional” – jornais e revistas. À diminuição das receitas com publicidade e redução dos lucros com as vendas de jornais, respondeu-se com a precarização e a compra de vários títulos e de vários formatos por grandes grupos financeiros. Torna-se portanto premente pensar num modelo de jornalismo para os dias de hoje, o mais plural possível e que proteja os jornalistas, dando-lhes as condições necessárias para a execução correcta da sua profissão.

A falta de pluralidade na comunicação social portuguesa não será uma surpresa para ninguém. Aos vários títulos já existentes, situados entre a imparcialidade e uma posição mais conservadora, juntou-se há não muito tempo o “Observador”, jornal em linha e abertamente de direita. Não foi portanto de admirar a cobertura enviesada dada às eleições legislativas do passado dia 4 de Outubro. Há, felizmente, excepções, como o mensal “Le Monde Diplomatique” que, na sua versão original, não se tem cansando de denunciar o impacto que a posse de vários jornais – incluindo alguns carismáticos de esquerda como o “Libération” – por parte de grandes grupos económicos tem na discussão e apresentação de ideias plurais. O editorial da edição do “Diplo” do passado mês de Outubro terminava dizendo que “num clima ideológico tão pesado como o actual, um jornal independente não é demais. (…) Encoraja as resistências, quando tantos outros se dedicam a esmagá-las.

É precisamente a falta de independência – e a falta de controlo por parte dos órgãos reguladores, diga-se – que permite que se tenha chegado a um ponto tão baixo do jornalismo. A pressão sobre os trabalhadores é imensa e a capacidade de resposta, limitada. Caso contrário, como entender a publicação do vídeo da sessão de despedimento dos trabalhadores do “Sol” e do “i”, numa demonstração de abuso e desprezo por parte do administrador, ele próprio jornalista.

Os desafios que se colocam ao jornalismo e aos jornalistas estão longe de ser um exclusivo português. Estive ontem numa sessão de apresentação de uma nova revista trimestral belga, de investigação e pesquisa jornalística e quando questionados sobre o porquê de terem avançado para a criação de uma revista e de o terem feito através de uma cooperativa, a resposta foi simples e clara: somos jornalistas e grafistas e estávamos fartos de ser explorados e não ter independência. Assim, as peças publicadas na revista são pagas entre 25 e 100% acima do preço recomendado pela associação de jornalistas profissionais belga.

A informação de qualidade e plural tem um preço. A discussão sobre como o pagar é essencial. Se os grandes grupos financeiros facilmente podem comprar títulos de imprensa, dando-lhes um teor cada vez mais conservador e precarizando a vida dos seus trabalhadores, as alternativas tardam em surgir. Até que ponto deve o Estado agir de modo a garantir essa pluralidade? Poderão as cooperativas garantir a necessária segurança laboral e a qualidade da informação? Estarão os portugueses disponíveis a bater-se de forma séria por um melhor jornalismo? E estarão dispostos a pagar por isso? São mais perguntas que respostas mas quanto mais tardarmos a discuti-las, mais estaremos a permitir a perpetuação dos abusos.

COP21: Combater ou perecer

Entre os dias 30 de novembro e 11 de dezembro, todos os caminhos irão dar a Paris. A capital francesa acolherá a vigésima primeira conferência das partes (COP21), ao abrigo da Conferência Quadro das Nações Unidas para as Alterações Climáticas (CQNUAC). Este evento reunirá mais de uma centena de chefes de Estado e de governo, com o objetivo de acordar medidas efetivas de combate às alterações climáticas. Após uma série de falhanços em cimeiras anteriores, esta é uma das últimas oportunidades para se tomarem decisões a nível global que possam realmente evitar processos irreversíveis, com consequências desconhecidas e incontroláveis. O ponto de não retorno tem sido associado ao aumento da temperatura média global em 2ºC em comparação com o valor pré-industrial que, sendo um valor simbólico e fácil de memorizar, é pouco operacional. Se é verdade que a cimeira tem mais de 10 dias de discussão entre as partes, é também verdade que grande parte das discussões e decisões já estarão concluídas nessa data. Vários sinais têm vindo a ser dados e sobre eles podemos fazer algumas análises.

Assinado na COP3, em 1997, e efetivo entre 2008 e 2012, o Protocolo de Quioto foi o primeiro a nível mundial a definir objetivos de redução de emissões de gases de efeito de estufa (GEE) de forma vinculativa. Sendo um passo na direção certa, este acordo está longe de ser suficiente, desde logo pelo facto de os Estados Unidos, um dos países com valores mais elevados de GEE, não ter ratificado o documento. Outro aspeto negativo que mancha o Protocolo de Quioto são as fraudes associadas aos mecanismos de compra e venda de créditos de emissões criados pelo mesmo e o facto de não haver qualquer sanção aplicada aos países que não cumpriram com as suas metas. Dadas as suas limitações, a definição de um novo mecanismo ou a extensão de Quioto têm, sem sucesso, sido tentadas. São de destacar os falhanços negociais em Copenhaga, na COP15 e em Doha, três anos mais tarde. Assim, a COP21 ganha uma dimensão especial sendo encarada como um momento decisivo. As expectativas são altas, mas a realidade pode ficar aquém do necessário.

Como referido, o aumento da temperatura média global acima dos 2ºC em comparação com os níveis pré-industriais terá efeitos nefastos para o planeta. Exceção feita a alguns fanáticos negacionistas do papel das emissões de origem antropogénica no aumento da temperatura global, este é um dado unânime. Apesar disso, caso não sejam tomadas medidas, poderemos chegar ao final do século com um aumento da temperatura média global acima dos 5ºC, o que teria consequências inimagináveis. Assim, mais do que acordos baseados na boa-vontade dos países e em reduções voluntárias, são necessárias medidas drásticas que limitem as emissões de gases de efeito de estufa. Esta limitação deve ser vinculativa e ter como teto valores cientificamente estudados e aceites como máximos toleráveis.

François Hollande está extremamente empenhado em conseguir um acordo minimamente aceitável em Paris. Com a popularidade em baixo e tentando recuperar o papel de ator global para o seu país, o presidente francês tem feito um intenso trabalho diplomático junto de vários homólogos. Em paralelo, algumas mudanças governamentais recentes e mudanças comportamentais em grandes países podem ajudar à obtenção de um acordo relativamente sólido. O Canadá, que nos últimos anos tem tido uma posição extremamente cética em relação ao combate às alterações climáticas, viu o seu novo governo, saído das eleições de outubro deste ano, juntar ao título de ministério do ambiente a pasta das alterações climáticas. Mais do que uma mudança cosmética, é um sinal para o futuro, como deixou claro o novo primeiro-ministro do país ao afirmar que “o Canadá será [em relação às alterações climáticas] um ator forte e positivo no palco internacional, incluindo Paris e a COP21. É por essa razão que temos uma ministra tão poderosa, não apenas em relação ao ambiente mas também em relação às alterações climáticas e que estará no centro das discussões”. Também na Austrália Tony Abbott, que fez da oposição às medidas de combate às alterações climáticas uma das suas bandeiras, deixou o cargo de primeiro-ministro no passado mês de setembro. No que pode ser visto como um encontro histórico, Barack Obama e Xi Jinping, líderes dos dois países com os valores mais elevados de emissões de GEE, declararam no final de 2014 o seu apoio a um acordo a ser obtido na COP21.

Em preparação para a COP21, vários países responsáveis pela maioria das emissões a nível mundial já apresentaram os seus objetivos de redução de emissões: redução de 40% até 2030 em comparação com os níveis de 1990 na UE; redução entre 26 e 28% até 2025 em comparação com os níveis de 2005 nos EUA; atingir o pico de emissões em 2030, na China. Sendo expectável que estes valores venham a ser a base do acordo de Paris, torna-se claro que, mesmo que cumprido, não conseguirá evitar um aumento da temperatura média global abaixo dos 2ºC. Cientes desse facto e de modo a pressionar os líderes dos diferentes Estados, a sociedade civil preparou-se para sair em força às ruas de Paris no dia anterior ao início da conferência. No entanto, na sequência dos ataques terroristas de dia 13 de novembro, as marchas pelo clima em Paris foram proibidas, sendo expectável que se realizam noutras cidades, um pouco por todo o mundo.

Não bastam portanto apenas boas intenções. Somente em 2009, no auge da atual crise financeira, o total global das emissões de CO2, um dos principais GEE, desceu em relação ao ano anterior. Torna-se assim necessária uma verdadeira alteração de paradigma a vários níveis. Desde logo, a nível energético, é necessária uma transição dos combustíveis fósseis para fontes renováveis de energia. O recurso a novas formas de extração de gás natural – com especial destaque para a fratura hidráulica ou fracking – tem sido apresentada com uma forma de transição energética. No entanto, este processo de extração extremamente inquinador e custoso tem feito com que o investimento que poderia ser feito nas renováveis seja desviado para este combustível fóssil, apresentado como mais “verde” que o petróleo. A prioridade deve ser dada a fontes renováveis de energia e à melhoria da eficiência energética, não devendo ser necessário recorrer a fontes energéticas de transição altamente poluentes.

Outro elemento essencial no combate às alterações climáticas passa por rever o nosso modelo económico, assente na globalização de um capitalismo agressivo e no livre-comércio sem qualquer barreira. Naomi Klein, no seu livro This changes everything, publicado em setembro de 2014, faz uma análise meticulosa e é clara ao indicar a impossível relação entre esse modelo e a sustentabilidade do planeta. As consequências estão já à vista através de fenómenos extremos como furacões e longos períodos de cheias e secas. O ponto em comum de todos estes fenómenos é o facto de as principais vítimas serem aqueles que menos contribuíram para as alterações climáticas, nomeadamente os habitantes dos países mais pobres. Nos países do Norte global os efeitos nefastos far-se-ão também sentir mas serão, uma vez mais, as populações mais pobres a sofrer as principais consequências. De modo a haver uma aposta na transição energética e no apoio aos países mais suscetíveis de serem vítimas das consequências das alterações climáticas, é necessário dinheiro. Muito dinheiro. A questão de como financiar um fundo verde será certamente das mais discutidas em Paris. Em Copenhaga, em 2009, os países ricos acordaram numa assistência financeira aos países mais pobres no total de 100 mil milhões de dólares anuais a partir de 2020. No entanto, a 5 anos do prazo, a soma disponível está ainda muito longe do objetivo.

A sigla COP21 significa a 21ª Conferência das Partes (Conference of the Parties, no original em inglês) mas poderia perfeitamente ter um outro significado: “Alterações climáticas no séc. XXI – Combater Ou Perecer”. É esta a dimensão do desafio que atravessamos e não teremos muitas outras oportunidades para mudar de rumo. Esperar que a evolução tecnológica por si só nos possa salvar é um risco que não nos podemos permitir correr. Os líderes mundiais terão que conseguir estar à altura deste desafio. Conseguirão?

Não ceder ao medo (nem ao “securitarismo”)

A atualidade internacional continua a ser marcada pelos ataques terroristas que no passado dia 13 de novembro mataram 130 pessoas em Paris. Misturando terrorismo, medo, religião, refugiados e política, os dez dias passados após os ataques têm revelado posições extremadas, muitas delas sem nexo e algumas até vindas da esquerda, numa tentativa de utilizar o medo gerado junto dos cidadãos com fins políticos. Seja na Europa, onde o inenarrável primeiro-ministro húngaro afirmou que todos os terroristas são emigrantes, seja nos Estados Unidos, onde o candidato às primárias pelos Republicanos e conhecido pelas suas posições polémicas Donald Trump defende a tortura e o recenseamento de todos os muçulmanos no país, não têm faltado exemplos desses exageros.

O momento é delicado e a luta contra o terrorismo não será ganha de um dia para o outro. Não será tampouco ganha se o medo do terror for substituído pelo medo de um Estado autoritário e securitário. É preciso que, na difícil relação entre segurança e liberdade, se consiga encontrar o ponto certo de equilíbrio e é portanto essencial que os atores políticos saibam manter o sangue frio. Se é, em certa medida, compreensível que a maioria dos cidadãos franceses apoiem a extensão das medidas de segurança em França, torna-se mais complicado explicar o facto de apenas seis deputados da Assembleia Nacional francesa terem votado contra a prolongação por três meses do estado de urgência, naquilo a que Noël Mamère chama de “recuo histórico da esquerda”. As propostas de François Hollande para facilitar a retirada da nacionalidade francesa a cidadãos bi-nacionais parecem não ter causado grande choque no seu partido. A poucas semanas das eleições regionais no país, o presidente francês parece tentar não perder votos para a Frente Nacional de Marine Le Pen que, por sua vez, não tem qualquer problema em afirmar que estas são apenas “medidazinhas”, apelando ao encerramento de fronteiras, pese embora todos os terroristas identificados até ao momento serem europeus.

Na Bélgica, país que tem, per capita, o maior número de cidadãos a lutar nas fileiras do daesh, a segurança é quase tema único. Há três dias que a região de Bruxelas se encontra no nível máximo de alerta, o que implica o encerramento do metro e um reforço dos militares nas ruas – de notar que desde os ataques ao Charlie Hebdo os militares já estavam em alguns pontos sensíveis da cidade – bem como o encerramento de escolas, cinemas e salas de concertos. Jan Jambon, vice-Primeiro-Ministro do país que é famoso por várias declarações polémicas, como por exemplo desculpando os colaboracionistas durante a ocupação nazi, afirmou que seria pessoalmente responsável pela limpeza de Molenbeek (comuna de onde saíram alguns dos terroristas) e que gostaria de ver todas as casas daquela comunidade a ser controladas.

Não podemos ceder ao medo. Nós, cidadãos da liberdade e da democracia, temos a obrigação de não ceder àqueles que nos querem obrigar a ter medo de viver. E somos também nós, cidadãos cosmopolitas de uma Europa sem fronteiras que se tem vindo a construir, que não podemos ceder ao Estado securitário. É uma luta desigual mas é preciso que os que acreditam na segurança tanto como na liberdade se façam ouvir. Às pulsões extremistas, constantemente alimentadas por uma comunicação social sedenta de violência, temos que responder com calma e ponderação. Sem um debate sério e moderado sobre a segurança que necessitamos e sobre como combater efetivamente o terrorismo, seremos certamente consumidos pelo medo irracional.

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Ilustração de Eduardo Viana

A luta de uma geração

Quando me comecei a interessar por política, algures no início da minha adolescência, lia com admiração imensa os relatos de várias lutas passadas que tinham marcado várias gerações. Naquela altura era a causa timorense que unia os portugueses e ficará para sempre na minha memória a manifestação organizada em frente à embaixada indonésia em Madrid, em setembro de 1999, que juntou pessoas de todo o país, dos mais novos, como eu, aos mais velhos. Em casa ia vasculhando livros dos meus pais, retratos da sua juventude. De “As portas que Abril abriu” aos discursos de Samora Machel reunidos em “A luta continua”, tentava absorver ao máximo todas as palavras, incluindo as que não entendia e que à época eram bastantes. Quanto mais lutas conhecia, mais invejava a geração dos meus pais pelo Maio de 68, pelas lutas anticolonialistas, pelo 25 de Abril.

Apaixonado por todas essas lutas, ficava triste por achar que nunca a minha geração teria a sua Sierra Maestra, as suas barricadas ou, num registo bem mais pacífico e mais próximo, as suas grandes lutas estudantis que alguns anos antes haviam levado tantos jovens às ruas. De certo modo, invejava essa geração rasca, pela sua coragem e atrevimento desafiador, esperando mobilizações semelhantes para a minha própria geração. As batalhas contra a invasão do Iraque apanharam-me a meio da minha adolescência e ainda longe dos locais das manifestações e quando a nova geração à rasca saiu à rua, já eu tinha saído do país. Durante muito tempo achei que a minha geração estava condenada à não-história, a ser apenas uma geração de transição. Longe estava eu de imaginar que afinal a realidade seria bem diferente.

Aqueles que como eu nasceram e cresceram numa comunidade europeia sem fronteiras não conseguem imaginar uma Europa de muros e de portas fechadas. As mulheres e homens das gerações Erasmus repugnam a ideia de um país orgulhosamente só. Pelo contrário, como nunca antes, os portugueses olham com atenção e interesse para o que se passa nos restantes países da União. Após os ataques em Paris, muitos de nós pensaram nos seus amigos que aí residem, portugueses ou não. Do mesmo modo, quando algo acontece em qualquer outro país europeu, é bastante comum alguém ter amigos ou conhecidos nesse país. E este é um sentimento recíproco pois nas últimas semanas foram várias as mensagens que recebi a pedir uma explicação para o que se estava a passar em Portugal após as eleições.

A minha geração, a que o Libé chama hoje na sua capa de geração Bataclan, festiva, aberta e cosmopolita, tem pela frente um desafio imenso. De um lado, aqueles que pelo medo e pelo terror nos querem forçar a alterar o nosso modo de vida. Do outro, os governos que pela força e pelo poder nos querem isolar dos restantes países, atacando assim a nossa liberdade. É contra estes dois extremos que temos que agir antes que seja tarde demais. Esta é uma luta de todas as gerações mas a minha tem uma obrigação especial pois este foi o país e a Europa que os nossos pais conseguiram construir e compete-nos conseguir a sua manutenção e melhoria. Será uma luta difícil de ganhar mas para quem, como eu, achou que a história não precisaria desta geração, este é desafio pelo qual esperávamos. Pela defesa da democracia e da liberdade todas as vozes contam. Que sejamos muitos e que saibamos estar à altura das nossas responsabilidades.

Turquia – tão perto e tão longe

Vivem-se tempos conturbados na Turquia. Desde o surpreendente resultado das eleições de junho, que não deram ao AKP a maioria dos assentos parlamentares, o governo turco acelerou a sua deriva autoritária. Não satisfeito com o resultado e vendo-se na impossibilidade de formar governo, o partido conservador de Recep Erdogan optou por reacender conflitos internos, esperando obter melhores resultados nas eleições antecipadas que se realizaram no passado dia 1 de novembro. A estratégia do medo funcionou mas não tão bem como o AKP teria desejado: recuperou a maioria dos lugares no parlamento, o que lhe permitirá governar o país sozinho, mas não conseguiu impedir a entrada do HDP (partido pró-curdo e pró-minorias) que, pela segunda vez e embora tendo perdido bastantes votos, conseguiu superar o anti-democrático limiar de 10% dos votos.

Com a nova disposição parlamentar não será possível aprovar a mudança constitucional desejada por Erdogan, de modo a transformar o país num regime presidencial; mesmo a convocação de um referendo onde tal mudança possa ser aprovada está dependente do voto de deputados que não pertençam ao AKP. O aumento do autoritarismo no país tem vindo a aumentar gradualmente nos últimos anos, com vários momentos-chave, como a repressão aos manifestantes na praça Gezi em 2013. Apesar disso, Erdogan conseguiu há dois anos um cessar-fogo com o PKK curdo, colocando parênteses num conflito de décadas. Infelizmente, a ação de força após as eleições de junho reacendeu o conflito e o cessar-fogo foi já anulado, o que levará certamente ao reacender do conflito, com todas as consequências que isso implica.

A Turquia, Estado-Membro da OTAN e há vários anos candidata à adesão à UE, é um parceiro fundamental dos países europeus. Apesar disso, os países europeus não podem fechar os olhos ao que se está a passar no país, seja por razões económicas, seja por razões políticas, como em relação às questões ligadas ao acolhimento dos refugiados de guerra. A atuação dos agentes políticos europeus tem, no entanto, sido em sentido contrário. Angela Merkel, desde sempre cética em relação à adesão da Turquia à UE, fez uma visita de Estado ao país pouco antes das eleições de novembro, onde mostrou vontade de acelerar o processo de adesão, no que pode ser entendido como um apoio tácito a Erdogan e ao AKP. Mais, o relatório sobre a evolução da candidatura do país à UE – extremamente crítico em relação à limitação das liberdades individuais e à liberdade de imprensa – que deveria ter sido publicado antes das eleições, foi apenas conhecido alguns dias depois.

Uma Turquia democrática e plural tem que ter lugar na União Europeia. Tivesse esse lugar sido concedido há mais tempo e provavelmente não veríamos agora estações de televisão e jornais a ser encerrados à força nem jornalistas a ser detidos. Tivesse a União Europeia sido mais acolhedora e talvez não tivéssemos visto imagens de corpos de curdos a ser arrastados por camiões blindados do exército nem cidades em estado de sítio, como Silvan no dia de hoje, com recolher obrigatório de 24 horas. A Turquia, apoiada no seu crescimento económico e pelo papel que tem desempenhado no acolhimento de refugiados, continuará o seu jogo diplomático. Antalya será entre os dias 15 e 18 deste mês palco da conferência do G20, onde dificilmente serão abordados os problemas de democracia no país. A UE, que tanto se tem afastado dos seus princípios fundadores, não pode abdicar do seu papel na defesa da democracia e dos direitos e garantias individuais. Assim, deve ter uma posição clara em relação ao que se passa atualmente na Turquia, mostrando-se honestamente aberta à sua adesão. Caso contrário, o país continuará a estar tão perto mas ao mesmo tempo tão longe.