Ao contrário do que defenderam os líderes dos partidos de esquerda representados na Assembleia da República na próxima legislatura, não acho que a indigitação de Passos Coelho seja uma “perda de tempo” e menos ainda um “golpe de estado”, como se ouve por aí dizer. O discurso de Cavaco Silva foi de uma falta de espirito democrático, de isenção ideológica, de lógica, que até se torna vergonhoso. Mas a sua opção por indigitar o líder da coligação que tem mais votos parece-me correcta. Desde que este vencedor, ainda que minoritário, esteja disponível e capaz para organizar um governo e um programa para apresentar ao parlamento, o presidente da república deve permitir-lho. Passada que está a bola, cabe agora à AR pronunciar-se perante as escolhas de PPC. É por isto mesmo que a indigitação de Passos Coelho não foi perda de tempo, e bem pelo contrário, permitiu a maturação do nosso sistema político, ao expor os deputados – e de acordo com os votos dos portugueses – a uma nova realidade, de uma maioria de votos e mandatos que não quer entendimentos com o vencedor das eleições. É esta mesma situação que torna o discurso do presidente ainda pior. Para além da ter excluído partidos políticos da nossa democracia de qualquer potencial participação governativa, desrespeitando a república a que preside, para além de ter justificado a indigitação de PPC com a potencial reação de mercados financeiros a uma alternativa (sem sequer nomear os partidos a que se refere), desrespeitando a escolha democrática dos eleitores, o ainda presidente tentou por fim influenciar os deputados num momento histórico e muito relevante da maturação do parlamento e, portanto, de toda a democracia portuguesa. Diz-se frequentemente que Cavaco Silva faz o que faz ou diz o que diz por ser muito institucionalista, mas parece não passar de mais uma desculpa para que os seus múltiplos percalços não obviem a sua obstinação autoritária e ideológica.
Mas a vergonha da intervenção do presidente da república foi apenas o primeiro mau momento desta fase. Seguiu-se hoje a apresentação dos membros do novo governo que Passos Coelho propõe. O que PPC e Paulo Portas nos apresentam é de uma indigência que quase alcança o quão fundo chegou o presidente. Mantendo-se o irrevogável Portas na sua inútil função, segue-se este desastre:
- aumentam ministérios – indo contra as suas próprias ideias ao formar governo em 2011;
- recuperam o ministério da cultura – que ainda há pouco era de tal forma um despesismo que lhe bastava uma ridícula secretaria de estado mal amanhada – juntando-o, talvez para poupar secretárias, à igualdade e à cidadania, promovendo para a sua tutela Teresa Morais, cujas opiniões sobre o casamento entre pessoas do mesmo sexo ou questões de identidade de género são sobejamente conhecidas e pouco igualitárias;
- misturam duas maravilhosas referências ao caso do BES, por um lado promovendo Fernando Negrão a ministro da justiça – já que falhou a eleição para presidente da AR – depois do seu papel na comissão de inquérito, e por outro escolhendo para ministro da administração interna Calvão da Silva, o senhor que atestou a idoneidade de Ricardo Salgado perante o Banco de Portugal quando Carlos Costa se preparava para lha retirar;
- promovem a ministro da saúde o secretário de estado Fernando Leal da Costa, figura cuja incompetência e inadequação ao cargo foi constantemente apontada pelos profissionais de saúde e cujo momento mais baixo, que não resisto a lembrar apesar de correr o risco de esquecer tantos outros, foi o seu comentário a uma reportagem da TVI que mostrou más condições e insuficiência do serviço em urgências após o pico da gripe: “o que nós vimos foram pessoas bem instaladas”.
Mais haveria para dizer, mas basta isto para ilustrar o desrespeito da liderança da coligação Portugal à Frente pelos portugueses. A justificação frequentemente repetida na comunicação social para este resultado é a da dificuldade em formar um governo que está morto à partida. Ora, se assim é, quanto mais não seja por uma questão de dignidade, cabe a Pedro Passos Coelho desistir e devolver a responsabilidade ao presidente da república. Apresentar esta formação, especialmente se for reconhecidamente por incapacidade de fazer um governo em condições, é inaceitável. Resta ter esperança de que este seja mesmo o governo mais curto da democracia portuguesa.