Experimentalismo democrático no Curdistão

As notícias que nos chegam do médio-oriente são, por norma, desoladoras. Ouvimos relatos de ditadores sanguinários, golpes de Estado, atentados e mortes. Há, no entanto, uma experiência democrática ímpar a ter lugar no Curdistão sírio que pouco ou nada é referida nos principais meios de comunicação social europeus. Em que consiste então esta experiência levada a cabo num país devastado pela guerra civil, pela maior minoria sem Estado próprio, atacada tanto por Bachar Al-Assad como pelos islamofascistas do daesh? O que nos ensina e o que podemos aprender com o “Confederalismo Democrático” curdo?

Os curdos, bem como a sua heroica resistência às investidas do daesh, foram notícia no ano passado, tanto pelo papel desempenhado pelos Peshmerga no Iraque, como especialmente pela resistência popular em Kobane, na Síria. Esta pequena cidade (menos de 50 mil habitantes antes do início da guerra civil) tornou-se o símbolo da resistência aos avanços do Daesh no Iraque e na Síria. Por detrás desta vitória esteve e está um modelo de organização política radicalmente diferente e desafiador, não só dos padrões do médio-oriente, como dos de todo o mundo. Como em Espanha durante os anos da guerra civil, estamos perante uma forma de auto-organização que desafia a ordem instituída.

O acordo de Sykes-Picot dividiu, ainda durante a Grande Guerra, partes do então Império Otomano em diversos países com maior ou menor mistura étnica e religiosa. Se, em alguns desses Estados, ditaduras laicas conseguiram forçar a coexistência entre religiões, outros, nomeadamente o Líbano, foram palco de longas guerras confessionais. Em oposição às propostas de criação de Estados de religião única como solução de paz permanente, os curdos na Síria optaram por um modelo oposto, onde procuram “uma sociedade onde as pessoas possam viver em conjunto, sem instrumentalismos, patriarcalismo ou racismo – uma sociedade ética e política com uma democracia de bases e uma estrutura institucional auto-gerida”. Mais, o preâmbulo do “Contrato Social” – espécie de Constituição da região autónoma de Rojava, na Síria – refere que todos os povos, curdos, árabes, assírios ou outros, se regem por aquela Carta, sob os princípios de autonomia democrática.

O Confederalismo Democrático curdo assenta em princípios de participação directa a vários níveis, desde assembleias de bairro até ao Congresso da Sociedade Democrática, onde os representantes das diversas assembleias e comunas têm lugar. A quota reservada às mulheres neste Congresso (40%) é não apenas um exemplo na Síria, mas também em grande parte dos países europeus – note-se que em Portugal esta quota é de apenas 33%. A ecologia desempenha também um papel central no quadro ideológico do Confederalismo Curdo. Se à primeira vista este facto possa ser surpreendente, olhando para o papel que a seca prolongada teve no eclodir da revolução na Síria e no desespero que levou muitos agricultores a juntar-se ao Exército Sírio Livre, percebe-se melhor a sua razão de ser.

Após anos de luta pela instituição de um Estado Curdo socialista, é interessante verificar a alteração ideológica impulsionada por Abdullah Öcalan, o mítico líder do PKK, preso e condenado a prisão perpétua desde 1999. Note-se que esta alteração não começou com as primaveras nos países árabes, sendo sim um processo com cerca de 10 anos – o Congresso da Sociedade Democrática foi fundado em 2005. Mais do que um Estado, o Confederalismo Democrático pode pois ser descrito como um sistema de auto-gestão, com uma estrutura orgânica na vertical, com o Congresso no topo, mas no qual os representantes das assembleias de base, que se vão revezando, têm assento, concedendo-lhe também um verdadeiro carácter horizontal. É também de referir a independência de acção das comunas, que permite que algumas delas decidam abolir a moeda como meio de troca. Trata-se pois de um sistema de organização sem um verdadeiro Estado por detrás.

Não se pense, no entanto, que todos os curdos têm simpatia por este modelo de gestão. Se no Curdistão turco e sírio, onde os partidos irmãos PKK e PYD têm um enorme ascendente, este modelo é bem recebido, no Curdistão iraquiano a preferência recai num modelo de Estado clássico. De referir que esta é uma região verdadeiramente autónoma dentro do Iraque, que funciona de facto como se fosse um Estado autónomo. Não deixa também de ser surpreendente que um boa parte do financiamento do Curdistão iraquiano provenha da venda de petróleo à… Turquia. Estes factos mostram o quão complexa é a situação curda e não existe uma visão unânime sobre como deverá ser um futuro Curdistão independente.

O evoluir deste modelo de gestão deve ser seguido com atenção. Numa zona do globo flagelada por múltiplos conflitos, poderá este modelo de gestão proposto pelos curdos, radicalmente diferente do modelo dos restantes países do médio-oriente, ser o caminho para uma paz duradoura? Poderá o Confederalismo Democrático ser a garantia de convivência pacífica entre religiões e etnias? Apenas o tempo o dirá, mas está neste momento a escrever-se uma página na história do experimentalismo democrático e é do interesse de todos seguir este processo com atenção.

Mais sobre este tópico nas seguintes ligações:

http://www.cvltnation.com/anarchists-vs-isis-the-revolution-in-syria-nobodys-talking-about/

http://www.biehlonbookchin.com/rojavas-communes-and-councils/

http://thenewinquiry.com/features/autonomy-in-kurdistan/

http://talkingpointsmemo.com/theslice/why-is-america-ignoring-kurdish-freedom-movement

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O carácter de Pedro Passos Coelho

Recentemente discuti com um amigo meu se o Pedro Passos Coelho é um extremista alucinado com boas intenções (como o seu ex-ministro Vítor Gaspar), ou um indivíduo sem qualquer réstia de escrúpulos ou integridade (como o seu ex-ministro Miguel Relvas), disposto a sacrificar os seus concidadãos no altar da sua ambição pessoal, em nome da sua mesquinha vaidade.
Quem me conhece, sabe que acredito na segunda hipótese.
Por muito que queira combater e considere perigosas as ideias e convicções de Vítor Gaspar, que tanto mal fizeram a este país, é-me fácil ter algum respeito pelo indivíduo.
Não era um indivíduo estúpido (longe disso, pelo que percebi), estava a fazer o melhor que podia e sabia, e qualquer um de nós deve temer estar tão equivocado a respeito da realidade como ele estava.

Mas Pedro Passos Coelho é outra loiça.

I

Ainda muito antes de chegar ao poder já estava envolvido em situações duvidosas com o seu companheiro Miguel Relvas (que, anos mais tarde, tentou manter no governo tanto tempo quanto foi possível).
Desde o que se passou na Tecnoforma, e as respectivas despesas de representação não declaradas, até um sem número de cargos de administração que surgem sem currículo que o justifique, entre muitos outros episódios, a verdade é que estamos a falar de um indivíduo cujo passado não inspira confiança.

II

Depois, veja-se o próprio episódio que leva Pedro Passos Coelho ao poder.
O líder do PSD dizia acreditar que a dívida deveria ser paga integralmente, e que portanto seria necessária “austeridade”. Se assim fosse, o interesse nacional seria aprovar o PEC IV – uma estratégia de “austeridade leve” – que não criaria uma crise política em cima de uma crise financeira, sem disparar os juros e colocar em causa a solvabilidade do país.
Note-se que eu não estou a defender o PEC IV, ou a criticar quem votou contra o PEC IV. Quem rejeita a estratégia austeritária tinha excelentes razões para votar contra esta via. Mas se Pedro Passos Coelho defendia o pagamento integral da dívida, certamente não iria preferir pagar juros mais altos a troco de nada que não a perda de soberania nacional… e por isso mesmo soube-se que ele iria aprovar o PEC IV.

Mas Marco António Costa disse “ou há eleições no país ou há eleições no PSD”. E entre o interesse nacional e a sua ambição pessoal, Passos Coelho não hesitou.
Até o seu correlegionário Durão Barroso teve de reconhecer o prejuízo para o país que adveio da escolha de Passos Coelho.

Mas lembram-se de quando eu disse que única razão aceitável para ser contra o PEC IV seria a de ser contra a austeridade? Aparentemente Passos Coelho concordou comigo, porque teve a distinta lata de comunicar ao país que chumbava o PEC IV porque “chega de sacrifícios!”.

Afinal, quem quer a todo o custo aplacar os mercados deve acreditar nos seus critérios, e as extraordinárias subidas de juros após a telenovela criada por Passos Coelho mostram que sua opção teve custos inequívocos e trágicos para Portugal.

jv
III
Se foi em nome do “fim dos sacrifícios” que Pedro Passos Coelho chumbou o PEC IV, esse foi também o mote da sua campanha eleitoral.
Este indivíduo “governou” durante cerca de três anos a dizer-nos que vivemos acima das nossas possibilidades e que são necessários mais sacrifícios, mas passou uma campanha eleitoral inteira a chorar pelos pobres portugueses demasiado sacrificados.
 
Nenhuma pessoa com um pingo de pudor e integridade teria aceitado governar como governou após uma campanha destas, ou fazer uma campanha destas acreditando no que disse acreditar ao longo dos últimos três anos.
Para ver este vídeo é preciso ter estômago, e estar preparado para sentir uma aversão à pessoa do nosso primeiro ministro que em muito ultrapassa qualquer divergência ideológica.
IV
A “governação” começou logo com a grande cambalhota discursiva. Passos Coelho começou de imediato a afirmar que os sacrifícios em vez de excessivos eram insuficientes, entre outras supostas “mudanças de perspectiva” (por exemplo: o TGV, que era supostamente uma obra decisiva para o nosso desenvolvimento, quando o que importava era atacar Manuela Ferreira Leite).

Mas o pior nem foi o discurso – foi a acção. Ao longo de um ano fiz uma compilação de fortes indícios (ou provas) de despesismo e corrupção durante a “governação” de Pedro Passos Coelho. Os exemplos eram tantos e tão frequentes que acabei por não encontrar tempo e disponibilidade para continuar este esforço. Alguns destes pontos, sendo da responsabilidade política do primeiro ministro, certamente não serão sua responsabilidade pessoal.
No entanto, existem vários que nos dizem bastante sobre o carácter e (falta de) integridade de Pedro Passos Coelho, dos quais destaco esta promessa feita a Carlos Pinto, de acordo com o que a Visão nos relata.

V

No fim, para compor o ramalhete, não posso deixar de falar na atitude “colaboracionista do actual “governo”.

Poder-me-ão responder que esta postura não demonstra a falta de escrúpulos dos actores envolvidos, que ele acreditam que uma atitude não confrontacional (servil) para com os alemães é aquilo que melhor serve o país, e eu terei de concordar que isso é possível.
Aliás, ainda acima digo que Vítor Gaspar – tanto quanto sei – é um indivíduo honesto, e ele próprio defendeu e executou esta estratégia de apaziguamento, levando-a ao extremo.
No entanto, os desenvolvimentos recentes permitem distinguir entre quem defende a estratégia de apaziguamento por acreditar genuinamente na sua incapacidade negocial para defender melhor os nossos interesses de outra forma, e quem o faz por considerar a sua sobrevivência política muito mais importante que o futuro do país.
Falo, claro, da vitória do Syriza e das implicações que traz para Portugal. Um governo que defendesse os nossos interesses (por anti-imperialismo à esquerda, ou patriotismo à direita) estaria hoje a apoiar as pretensões da Grécia, pois elas representam um enorme potencial ganho para Portugal.
Agora que receberam o inesperado apoio de Obama a Hollande, Portugal poderia aproveitar a ocasião para ganhar recursos e fazer poupanças, desperdiçando uma menor fatia do erário público em juros.
Claro que isso implicaria (indirectamente) reconhecer o falhanço da estratégia apaziguadora, mas um governante íntegro que a tivesse conduzido com as melhores intenções preferiria que a sua asneira se tornasse clara do que prejudicar os nossos interesses desta maneira.
Em vez disso, esta gente opta por tratar os seus eleitores como estultos, e falar-lhes nas ninharias que Portugal pode perder se a Grécia não pagar tudo, esperando que ninguém tenha capacidade mental para perceber que o país ganhará várias dezenas de vezes mais do que aquilo que possa perder, caso um cenário desse tipo tenha lugar.»
Texto de João Vasco