É inaceitável que a retórica da austeridade dissocie e subalternize o contrato social ao contrato de dívida. É inaceitável a máxima de acção “Honra as tuas dívidas” tornar-se um imperativo de natureza categórica que não se deixa condicionar pelo contrato fundador que nos liga como comunidade, nem sequer por máximas como “Honra primeiro as tuas obrigações humanitárias”. A inversão de peso destas duas máximas só não tem ganhado contornos mais chocantes por serem politicamente compartimentadas e estancadas em planos distintos – enquanto o contrato social é enquadrado como se fosse apenas um assunto interno, a dívida é contratada internacionalmente sem nunca olhar para dentro -, evitando-se, ou retardando-se pelo menos, qualquer contaminação entre os dois planos e as suas legitimidades. Mas este é só mais um expediente retórico da austeridade.
Qualquer contrato de dívida deve pressupor um horizonte comum de acordo quanto às condições aceitáveis para a sua consumação e quanto às condições que devem determinar o seu cancelamento. E deve mesmo implicar activamente as partes contratantes do contrato de dívida na preservação das melhores condições possíveis para a sua resolução bem sucedida. Com efeito, as obrigações explícitas do endividado para o seu credor são acompanhadas por obrigações de solidariedade, pelo menos tácitas, deste para com aquele. O credor repudiar obrigações solidárias para com o endividado em condições de justificável solidariedade, deve mesmo legitimar um direito de desobrigação do endividado.
Esta interdependência solidária que a austeridade injustamente recusa é tanto mais sensível quanto mais os contratos de dívida dizem respeito às funções do Estado ligadas ao contrato social. Uma dívida pública contraída para fazer face às obrigações sociais de uma comunidade nacional, mesmo às suas necessidades de investimento para recuperar a condição económica capaz de fazer face ao seu serviço de dívida, pressupõe um comprometimento recíproco das partes envolvidas nos valores e objetivos do contrato social do endividado. E não é muito diferente a circunstância em que a dívida é privada mas se agrava para acudir às necessidades básicas que reportamos como próprias ao plano humanitário. Por isso, só posso considerar que o governo grego faz justiça ao repor a energia eléctrica a 300 mil pessoas cuja situação social está abaixo do limiar de pobreza. E como esta muitas outras obrigações sociais desta ordem devem activar os deveres de solidariedade de credores. Nenhum contrato de dívida pode, de boa-fé, sobrepor-se ao contrato social.